Se eu me sacrificava tanto, para mandar um “ladrão” dum filho a estudar; eram palavras de uma samarra por adopção, vinda de Pala e que, de certo, ainda não sabia a fibra de que os Samarras eram feitos. Reportemo-nos agora à geração massiva de jovens, que foram estudar a partir de 1956 e que viria a ser a mais qualificada de sempre, até então, em termos académicos. Já vimos que as oportunidades que surgiram aos jovens que nos antecederam, passaram pela Instituição Igreja e agora a grande alavancagem continuou a ser o Seminário Diocesano do Fundão e sobretudo os das Ordens Religiosas que se tinham instalado recentemente no Centro e Norte do País.
Não referiremos os nomes dos jovens que ingressaram em cada um dos Seminários ou Institutos Missionários, porque, para alguns, a passagem por estas casas e a palavra passagem é a adequada; os marcou, ou não, de tal forma, que ainda hoje consideram essa passagem um estigma: talvez porque, o guião de vida de muitos tenha sido enformado nessas casas.
A ida para o Fundão surgia a pedido dos pais ao pároco da altura, o Pe. José Bernardes e mais tarde ao Pe. João Fragoso, que acediam, ou não, ao seu encaminhamento e isso passou a ser mais evidente, quando surgiu a procura de vocações, por parte dos padres missionários, que pediam ajuda e conselho, à professora a D. Aninhas; ela mesmo encorajava os pais a fazerem mais um sacrifício pelos filhos e ao pároco, antes de falarem com os pais dos garotos.
Assim, os primeiros e únicos, a entrarem no Seminário Missionário do Verbo Divino no Tortosendo em 1956, foram o A. Rodrigues e eu; ele como é do conhecimento de todos, chegou a sacerdote, mas já noutra instituição. Entrámos 40 em cada uma das 3 casas: Tortosendo, Guimarães e Fátima, num total de 120 e chegaram ao sacerdócio 6 e hoje mantêm-se 4: porque muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos (Mt. 22,14).
Dos sete jovens que passaram pelo Seminário do Fundão, nenhum chegou a ser ordenado; recentemente o Pedro I. Fernandes, que ali estudou, agora já reformado e avô, deu continuidade aos estudos teológicos e foi ordenado Diácono em 2011.10.23.
Na senda dos dois primeiros em 1956, outros trilharam os mesmos caminhos, sobretudo para o Seminário Missionário de S. João Batista – Escola Apostólica de Cristo Rei, Gouveia, por onde passaram 16 jovens Samarras e também aqui, não chegou nenhum ao sacerdócio.
Pelos Franciscanos Capuchinhos de Cucujães, passaram dois jovens; mais tarde um, o Adérito Eusébio (RIP) emigrou para o Brasil, onde veio a falecer em 1967, aos 21 anos de idade.
Fazemos aqui uma excepção ao referirmos o nome de um dos Jovens Samarras, que começou por estudar no Seminário Missionário de S. João Batista – Escola Apostólica de Cristo Rei, Gouveia e mais tarde na casa mãe na Alemanha e porque, para ele o ter estado nesta casa, foi mais que uma passagem e não foi um estigma, pelo contrário; pois colaborou em muitas das actividades desta Instituição, quer enquanto aluno, quer depois, nos encontros que habitualmente se realizam e de certo que o fazia com gosto e com sentido de gratidão por tudo o que ali recebeu para a vida. É o saudoso Valdemar F. Tomás, que Deus se dignou chamar para junto de Si em 2013.05.05 e a cujas exéquias fúnebres presidiu um sacerdote seu amigo e ex-colega, o Pe. Cristino. Respigo aqui o que o Valdemar assina num artigo de um livro da Instituição, que retrata todos aqueles que ali entraram, quando se separou dos seus ex-colegas: “chegou a hora do adeus, irmãos vamos partir, mas com fé e confiança de um dia voltar”. Há dias ouvi um prior, na sua homilia dominical, perguntar e responder: o que é que temos de mais certo na vida? Além de dar a resposta que qualquer mortal daria, ele disse mais; se somos homens de fé: é a vida. O nosso Valdemar irá apagar as velas no bolo, com os 69 anos, junto do Pai. Era casado com uma professora Samarra e deixou um casal de filhos médicos.
Valdemar, 1957 e 2010 |
A geração dos garotos Samarras que aprenderam a ler à luz da candeia de petróleo ou da vela e que fizeram a 4ª.classe, à data, sem ensino obrigatório além desta, sem escolas para onde irem estudar e sem meios económicos, o que podiam esperar? De facto não valia a pena, nem parece que houvessem estímulos para sonhos; mas eis que a sorte lhes sorri, ao serem repescados e incentivados por aqueles padres missionários estrangeiros, que percorriam as aldeias e junto das professoras e do pároco, procuravam jovens que lhe pudessem dar alguma esperança de fazerem deles homens para a vida e se a vocação surgisse, possíveis padres. Destes, aqui na foto de 1959, dois tiveram essa ventura.
1959
Bernardino, J.Inácio, J.Paulos, J.Fernandes, A.Paulos, F.Mendo / J.Lima, Adelino Paulos, Adérito e A.Rodrigues |
Foram os padres professores, destes institutos missionários que eram quase todos estrangeiros, da Europa Central e de Leste, homens que tinham vivido os horrores da 2ª. G. Guerra, onde alguns participaram, tal como o bom Papa João Paulo II de grata memória, homens sofridos e outros brasileiros e um ou outro professor português; homens de múltiplas culturas e saberes e nós os garotos que íamos de meios rurais pobres e isolados, os sortudos: a quem transmitiram valores universais e humanos, que muito nos ajudaram a crescer e sermos quem somos. Não obstante a ponderação, o empenho, a sensibilidade e o trato destes mestres, a avaliação nem sempre terá sido fácil e acertada e assim uns e outros iam ficando pelo caminho.
É a estas instituições que nos deram o grande empurrão, aliás, não só aos Jovens Samarras, mas a milhares de jovens deste país, daquelas décadas, a quem os próprios em primeiro lugar muito devem, mas também o país, pois foram eles que ajudaram a formar culturalmente e a moldar o carácter de muitos jovens, quando o país o não podia ou o não sabia fazer. Para manifestarmos a nossa gratidão, que melhores palavras que aquelas que nos ensinaram a balbuciar, quando ainda éramos crianças, sempre que a ocasião e a boa educação o exigiam: “BEM-HAJAM”, por nos terem feito membros dessas comunidades.
Se não fosse o grande esforço dos pais, repito, os primeiros Heróis do nosso sucesso e estas instituições, de certo que muitos de nós não teríamos estudado; pelo menos naquela idade, primeiro e em simultâneo, porque as únicas escolas eram o liceu da Guarda, e o Outeiro de São Miguel, também na Guarda e porque os magros rendimentos dos nossos pais também não o permitiam, por mais que se esforçassem a trabalhar de noite e de dia nas minas e no a campo.
Recordo dois jovens emigrantes da minha idade, que mais tarde me disseram, eu também devia ter ido para o seminário; isto depois de ter regressado de África com a vida desorganizada e outro; a França para muitos dos que estudaram estava aqui.
Em 1969 surge em Pinhel uma janela de oportunidades, com a abertura da Escola Técnica, uma extensão da Escola Industrial da Guarda; assim, para alguns jovens samarras, surgia a possibilidade de estudarem perto de casa e a custos suportáveis: e o primeiro a frequentá-la, aquando da sua abertura, foi o J. Fernandes.
Agora, passadas seis décadas e com outra política no ensino, mal fora se assim não acontecesse, as escolas proliferaram e a liberdade de escolha já é diferente: o ensino obrigatório estendeu-se até ao 12º ano, em contrapartida à 4ª. classe.
Hoje, as casas daquelas instituições estão vazias, enchendo-se uma vez por ano nos encontros de ex-alunos, em que procuram matar saudades juntos dos colegas de carteira, tocarem os recantos por onde se roçaram, manifestarem apreço e reconhecimento aos actuais responsáveis, alguns também eles ex-colegas de carteira, por tudo o que ali receberam. Nestes encontros há sempre uns quantos que aparecem pela 1ª.vez e que, ao desmorrerem, são saudados por muitos: são momentos de procura dos tempos vividos.
Dois outros jovens, manos, desta época, devido aos recursos económicos de seus pais, seguiram outros caminhos e um licenciou-se em advocacia e outro em medicina. A estes, juntou-se um outro que se licenciou em engenharia.
Quanto às garotas, algumas, poucas, rumaram à Escola Regional Feminina da Cerdeira do Côa - Escola Dr. José Dinis da Fonseca, a mesma onde entrou em 1943, a Ir. Matilde Carapito, agora com outra denominação. Esta casa tem como directora uma garota Samarra do nosso tempo, a Felicidade Aguiar Ramos. Ainda nesta última década, uma ou outra, começaram por estudar no liceu da Guarda, para o que contaram com a ajuda de familiares, nomeadamente a avó ou irmã mais velha, que as acompanharam e que cuidavam da casa alugada e lhes faziam as refeições.
Os jovens estudantes de hoje, mesmo os da aldeia, deslocam-se para os locais de ensino de carro ou de autocarro. Vou tentar descrever-lhes como é que nós, salvo raras excepções, chegávamos à camioneta da carreira que apanhávamos nos Gravelos, um pouco à frente das Souropires, na Cogula ou em Pinhel e ao comboio em Vila Franca das Naves. Como tínhamos de percorrer o caminho a passo de burra, de madrugada bem cedo, os nossos pais acordavam-nos, aparelhavam a burra, que tivera direito a uma ração especial, talvez uns punhados de milho ou de centeio demolhados; dado que nos havia de carregar e ao saco da roupa, ou a mala de cartão, com o parco enxoval e conduzida pelo nosso pai, que à frente com o gasómetro que usava na minas, procurava o trilho menos pedregoso para passar e para orientar a besta, puxando-a ora para a direita, ora parar a esquerda: para nos tentar livrar as pernas dos bardos das silvas que emolduravam as paredes dos estreitos caminhos, ou por meio dos pinhais e para que não se espantasse e nos atirasse ao chão, ao voo repentino de qualquer noitibó, no que esta ave é perita, maldade que já lhe advêm do tempo em que Maria e José iam de Nazaré a caminho de Belém para se recensearem e não fora a mão firme de José, a burrinha teria atirado Maria ao chão, com a agravante de estar prestes a dar à luz o Deus Menino. Dizem que é já desde esta data, que esta ave insectívora e de hábitos nocturnos e crepusculares e que passa o dia no solo onde faz o ninho, que lhe ficou a maldição e esta será a razão da sua vingança.
Os ribeiros ou mesmo a ribeira, ali pela Dominga-Chã, era atravessada com água a dar pela barriga da burra, nós encolhíamos as pernas e eles tentavam equilibrar-se nas poldras para tentarem passar o leito de água.
Com uma despedida lacrimejada e com um até daqui a um ano, deixávamos para trás pessoas e lugares que conhecíamos e entravamos na camioneta ou no comboio, com destino ao desconhecido; admirados pela estrada ter um traço branco a dividi-la ao meio na sua longitude. Mais tarde, por vezes, já nos juntávamos a outros jovens que vinham de outras aldeias, bem longe, como Castelo Rodrigo, Escarigo ou Vermiosa, que ficam para lá da excomungada ou da zona da raia e assim, mais animados chegávamos ao destino: Fundão, Tortosendo, Gouveia, Cucujães ou Fátima: esta, bem mais distante e porque o dinheiro era pouco, as férias, para alguns, só eram anuais e duravam cerca de um mês.
Mesmo assim, ainda havia tempo para ensaiarmos e fazermos umas peças de teatro, de cariz educativo e moral, no palco do antigo salão. Os actores destas fotos acabavam de interpretar a peça “Mocidade Heróica” de Pe. B. Valentini. Fotos tiradas na tournée que fizemos à aldeia vizinha e porque as salas de espectáculos estavam todas ocupadas; o teatro teve lugar no alpendre da escola, com umas dezenas de atentos espectadores, descansando o corpo sobre as pernas e que não regatearam aplausos aos actores.
Regista-se que os cenários e outros adereços, foram carregados às costas pelo caminho dos Mortórios e da Santa Bárbara acima. Para estes jovens os obstáculos eram desafios e estes eram ultrapassados. Uma outra peça que representámos foi “Matei o meu Filho”. Permito-me registar que o principal entusiasta destas encenações e representações foi o A. Rodrigues e chegámos a trazer parte do guarda-roupa, do Seminário de Fátima, para o efeito. Outros estudantes destas décadas, foram protagonistas de outros eventos.
1959 Mª Helena, Anunciação, Marcinia, Mª. Cecília, Mª. Alice, Lucinda e Mª. Celeste |
Afinal, mais tarde, o que vieram a fazer estes jovens por quem os pais tanto se sacrificaram, para lhes darem um modo de vida diferente da sua? Para muitos, a formação científica, humanista e espiritual que nos foi transmitida, foi a enxada ou se quiserem a caneta forjada, que nos permitiu dar outro rumo à vida, quando enveredámos por caminhos diversos. Uns continuaram a estudar e adquiriram várias valências e podemos encontrá-los, se bem que alguns já reformados: nas áreas do ensino, dos seguros, bancários, funcionários da administração pública, advogados, médicos, engenheiros e outros exerceram cargos de gestão em empresas nacionais ou multinacionais e mesmo em empresas próprias. Hoje, só na área da saúde, conseguimos nomear mais de meia dúzia de enfermeiras e mais de uma dúzia de médicas/os, se bem que alguns ainda a concluírem a licenciatura; mulheres e homens jovens a quem corre nas veias o Sangue Samarra e muitos, filhos e até já netos da geração de jovens estudantes que nos propusemos aqui trazer. Noutras profissões encontramos muitos outros, nomeadamente um juiz desembargador.
Agora, à distância de algumas décadas, testemunhamos e agradecemos o verdadeiro amor paternal com que fomos beneficiados e que exaltamos. Esta foi uma parte da história dos Jovens estudantes Samarras da década de fins 50/60: narrada por quem esteve, por quem a viveu e a testemunha. Outros, por ventura, terão outro ponto de vista e que respeitamos. Onde quer que nos encontremos, em termos profissionais ou de geografia, lembremo-nos que somos herdeiros dos costumes e vivências da terra Samarra, de uma cultura de sacrifício e de trabalho e se esta crónica nos ajudar a recordar o nosso passado colectivo, terá cumprido o seu espaço.
Junho 2013 (25)
Apaulos
que tempos estes... mais felizes certamente
ResponderEliminarna foto das mulheres ,fundo da foto...aquele portão era a entrada para a chamada eira grande,onde se malhava ainda a mangual...ainda me lembro!
ResponderEliminarTive de ir ver o que era o mangual... já sei.
Eliminarainda não fui ver e não me parece que chegue lá sem ir ver. mas vou atirar à sorte: tipo manual? é?
EliminarNão. É a ferramenta com que se malhava o centeio.
EliminarTio Valdemar,de boas lembranças e inteligência acima da média.Vai fazer muita falta.Foi cedo,para que mais pessoas ainda o valorizassem em vida.Grande Samarra que dignificou nossa gente e foi um vencedor.Bons tempos.Os Samarras são vencedores ! Sorte não existe (ela é a competência aplicada,na oportunidade surgida),portanto Samarras ;estudem, como esses que foram aqui tão brilhantemente retratados por António Paulos.
ResponderEliminarObrigado A.Paulos! Que bom reviver aqueles tempos! (Tenho uma dúvida: a data, 1959 da foto dos rapazes, não deverá ser 1969?)
ResponderEliminarAbraço
Muito crentes. Veneráveis seres apostólicos, híbridos na fé e na pomposidade intelectual, ide mas é trabalhar, fazer qualquer coisa útil para a sociedade.
ResponderEliminarShhh...Mistolin é o tira-gorduras mais vendido em Portugal. Mas não diga a ninguém
ResponderEliminarJoão! As fotos são todos da mesma data e é a que está nas mesmas.Foram tiradas junto da escola no Sorval, quando fomos ali representar a peça do teatro referido.
ResponderEliminarAproveito para agradecer a quem guardou as duas últimas, tantos anos, e andava atrás delas desde Agosto, pois sabia que existiam em França, nas mãos do conterrâneo o Bernardino. Aradeço à Cristina e à Amélia Maria as diligências para que as podessemos partilhar nesta crónica. Abraço
pena algumas fotos estarem desfocadas. Muito bom saber como era a nossa sociedade samarra há mais de meio século atrás
ResponderEliminartanta peça que eu assisti naquele salão, peças de teatro com actores e autores da nossa terra. Agora querem transformar a nossa terra num estado religioso comandado por infiéis. É pena.
ResponderEliminarEra borrifa-los com mistolin.
Eliminara shiad da ferrugem hermeticamente fechada com cortiça.
Ok. A. Paulos, mas insisto e dou-te o exemplo do Toneca - é impossível ele aparecer ali naquela data! Basta pensar na idade dele (ele é mais novo que eu)!
ResponderEliminarAbraço