O Nosso Carnaval é o mais antigo de Portugal, o nosso é o mais genuíno, o nosso é o maior, o nosso é o mais trapalhão, o nosso é o mais mediático, o nosso é o mais Brasileiro de Portugal. É com estes adjectivos, que as Câmaras promovem os Carnavais nas suas Autarquias; umas decretam este evento como feriado com um, dois, ou três dias, furando as recomendações do Governo actual, os comerciantes fazem bons negócios e os foliões divertem-se.
A
manhã do Entrudo Samarra dos anos 50 do século passado, o de 22.02.1955 a
que me reporto, passei-a com o meu pai até às 12h00, a juntar pedras em
murouços, nas terras centeeiras do Carmelo, aquelas que ficam no termo
da aldeia e as mais distantes, a fim de se prepararem para melhor
produzirem o respectivo cereal, junto das quais existia uma pequena
mata, o Prado, onde amiúde, alguns, conseguiam vislumbrar um felino,
chamado de gato bravo na ausência de um nome inequívoco, seria um
Lince?..
Ao
entrarmos na aldeia, pelo Largo da Cancela, o primeiro aparato
“entrudesco” que vejo é protagonizado pelo meu avô, J. Paulos, que com
as burras jungidas, de cuja canga pendiam algumas cordas a que estavam
atadas várias lata, que arrastava pelo empedrado das calçadas, dando
voltas à aldeia, com o ruído da latoaria arrastada pela parelha dos
jericos, tentando, à sua maneira, divertir os outros.
A
ementa do jantar, hoje almoço, de terça-feira de Entrudo, “terça-feira
gorda”, foi de batatas cozidas com pé de porco, língua do dito e carne
da cabeça do mesmo, que se verificava em muitas casas Samarras neste
dia, pois era uso e de sabor apreciado.
Uns, sobretudo os rapazes, “alugavam” as saias e vestidos à mãe ou irmãs e assim travestidos, sentiam-se mais à vontade para
fazerem algumas tropelias, de saias compridas ou bem curtas, denunciando
e realçando as formas. Uma personagem que também marcava presença, era o
amolador/afiador de tesouras e arranjador de sombreiros, que com a
gaita-de-beiços alertava os potenciais clientes de ocasião, da sua
presença oferecendo os seus serviços.
O
local que mais gente interessava e reunia, era o Largo da Escola junto à
Torre Sineira, onde se procurava matar o galo, tradição muito antiga,
em que os rapazes compravam um galo, enterravam-no deixando apenas a
cabeça de fora e os Samarras que se propunham acertar na cabeça do galo
com uma vara, apartir de uma certa distância e de olhos vendados,
pagavam uma taxa e habilitavam-se para tentarem concretizar este
sacrifício.
Vedados
os olhos ao candidato, faziam-lhe dar várias voltas sobre si mesmo e
punham-lhe nas mãos uma vara para que tentasse acertar no galináceo; por
vezes faziam pontaria à crista do galo para um lado e o galo estava na
posição oposta o que era motivo de grande galhofara dos presentes. Logo
que tivessem reunido o pecúlio do custo do galo e mais uns trocos par
uns pirolitos, levantavam o galo e iam cozinhá-lo em casa de um deles.
Neste
Entrudo, formou-se um outro grupo de homens já maduros, que resolveram
imitar o ferreiro, o Ti João dos Santos, que residia e tinha a forja -
oficina no Bairro da Quintã. Para tal, muniram-se de alguns instrumentos
de ferro de modo a poderem imitar a função daquele respeitável artesão
Samarra, montando a forja/banca aqui e acolá e à porta de alguns
Samarras e começavam a trabalhar imitando o eminente Samarra: “Oh Zé
bate aqui, bate ali, ah - ah, bate aqui, bate-bate, bate aqui, bate ali,
ufa”...; o Zé era o filho, o Ti Zé Bolinhas, pai do ”ex-libris” o
António; no pressuposto de que os conterrâneos achassem piada à paródia e
aguardando uma eventual chouriça e o copito de vinho para continuarem a
folia.
Como os dias ainda eram
pequenos e já no lusco-fusco da luz dos copitos “empinados”, nas
tabernas que ainda eram muitas e dos conterrâneos que ajudavam a
alimentar a paródia, pois a electricidade ainda estava a caminho e
demoraria um quarto de século a chegar; ali pela Rua do Outeiro, junto
da casa do Ti Porfírio A. Dias (o pai do Ti Zé Mau), montaram pela
última vez a sua forja. Estando ali o conterrâneo, António I. Pedro (o
Ti Tónio Fechisco) e tendo entrado em divergência com o grupo, um
ter-lhe-á dado com o martelo da forja na testa, de certo, sem intenção
de lhe causar danos irreparáveis, mas o pior aconteceu, e este
conterrâneo deixou viúva e 4 filhos órfãos, dois rapazes e duas
raparigas, todos de tenra idade, uma com cerca de seis meses.
Quanto ao culpado da estúpida e irreflectida acção, disseram-se muitas coisas, mas a única certeza é que a GNR na madrugada do dia seguinte fez algumas detenções e entre acusações de foste tu eu não fui, terão convencido um deles a declarar-se culpado com a promessas de apoio, de ajuda e contrapartidas e o condenado foi o ”J.P.”, que após o julgamento e condenação, passou alguns anos na cadeia de Alcoentre, deixando a família com um rancho de filhos pequenitos ao cuidado da mulher, mas ficando sempre a convicção de que estava a pagar por outro, o que empunhava o punho do martelo, tornando este “Entrudo” num dos inesquecíveis “Entrudos Samarras” pelas piores razões.
Posteriormente
as folias foram-se diversificando, nomeadamente com a eleição da “Miss
Samarra”, aqui a Miss coroada foi a Paula e a miss-mini de seu nome
Carla, que aparecem coroadas na foto acima e para que desgraças destas
não se viessem a repetir, as comissões organizadoras “ad hoc”,
providenciavam e requeriam a presença das autoridades a “GNR” para
prevenir possíveis zaragatas, o que se verificou ser de utilidade
efectiva e os Samarras continuaram a divertir-se no seu Entrudo, que,
também este, para eles, era o maior e o mais genuíno.
Ps.:
Permito-me referir mais uma vez, que a indicação de alcunhas, é para
que muitos de nós que ainda conhecemos estes Samarras os possamos
identificar, não tendo qualquer intenção de desdém.
Fevereiro 2015 (47)
Apaulos
Muito mais nosso este entrudo que o dos abrasileirados culturais. Parabéns pelo artigo.
ResponderEliminarA vida é feita de coisa boas e menos boas e deixou-nos aqui um "Entrudo Trágico" e outros divertidos e também estes fazem parte da história da Aldeia Samarra.
ResponderEliminarApaulos, parabéns por mais uma crónica simples, mas enriquecedora da nossa memória colectiva.
E também traziam a sertã para, ali mesmo assarem as chouriças que lhes davam.
ResponderEliminarFoi pena ter terminado em tragédia.
Também digo obrigado, por nos trazer estas tradições do tempo dos nossos pais e avós.
lindo, lindo, lindo! Tanta gente na aldeia, gente jovem e tanta alegria. Grande recordação.
ResponderEliminarO Zé Manel Matumba na primeira foto a tocar viola! C`est pas possible!
ResponderEliminarainda havia burros com fartura... Tudo tão genuíno, tão gracioso... tão belo.
ResponderEliminarainda lá há muitos burros.
EliminarA propósito, o padre mandou uma vez mais uns recados políticos do púlpito para baixo dizendo que tentaram boicotar a festa da ermida. Onde isto chegou!
EliminarMuito bem Sr. Samarra!
ResponderEliminarFaz-nos bem recordarmos de onde viemos, para apreciarmos melhor onde chegámos.
A "Canalha miúda" era muita, por onde andarão eles agora? Quem os apresenta?...
ResponderEliminarGente boa e simples,como meu saudoso avô materno-João dos Santos,o ferreiro.Mais uma bela crônica António.Meu pai Jeremias Carapito,disse que esta morte se deveu â bebedeira dos participantes,já que eram amigos (ele não presenciou a briga,mas chegou logo a seguir,aliás como "toda aldeia").
ResponderEliminarQuem consegue, ainda, identificar quem eram as forças de autoridade, amanhã já será tarde. Boa folia Samarras
ResponderEliminarÉ uma recordação BELA e TRISTE, em face dos acontecimentos, mas a vida também é isto...
ResponderEliminarEstas e Estes que foram garotas/os, hoje mulheres e homens já avós e respeitados,
ResponderEliminarespalhados pelos 4 cantos do mundo; é a vida da gente Samarra.
Passados 40 anos, por onde andarão estes jovens foliões Samarras, isto eram ENTRUDOS GENUINOS; este infelizmente, com um fim triste, mas são factos que não podemos apagar. um abraço Samarra
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