Nas últimas décadas do século passado, anos 30/40, os momentos centrais da quadra natalícia eram a Ceia de Natal ou Consoada e a Missa do Galo e o seu arauto os Sinos Samarras da torre sineira, quadra que, em abono da verdade, sempre continuará a marcar o ano litúrgico dos cristãos e muito particularmente da Comunidade Samarra.
Na semana natalícia, logo pela manhã éramos acordados com o repenicar dos sinos e andassem os Samarras, à azeitona, onde quer que fosse: Rasa, Mortórios, Moragos, Valdazinha, Lomba, Defarelo, etc., estes encarregavam-se de lhes levar o perfume natalício das suas badaladas e o seu toque prolongava-se noite fora até cerca da meia noite, porque sendo os rapaz e garotos em grande número, a aldeia tinha cerca de 600 residentes e muitos daqueles queriam agarrar no badalo e batê-lo nas bordas do sino e anunciar às gentes samarras que o nascimento do Deus Menino estava para breve. Sempre os sinos a alertarem-nos para acontecimentos especiais.

Se o repenicar dos sinos anunciavam uma quadra festiva e de alegria, e que excitava as crianças, para quem residia nas proximidades da torre sineira, podiam ser dias de arrasar os nervos, tal como acontecia às duas irmãs Belgas, tinham sido emigrantes na Bélgica, aliás uma família dos primeiros emigrantes, já que, irmãos seus também emigraram para o Brasil, os Soeiros e por seu intermédio muitos mais emigraram para aquele país.
Estas Sras., com frequência, subiam as escadas da torre, com a vassoura de pau na mão, para malharem nos rapazes e garotos, que não lhes davam momentos de sossego com o repenicar constante dos sinos. Recordam-se daquele que nos disse, nos comentários de uma crónica, que um dia teve de descer pelo interior do poço da torre, agarrado à corrente do pêndulo do relógio, para se livrar de umas verdascadas, descarregadas pela ira das ditas manas, que já não aguentavam mais, para elas, aquele barulho infernal, que, porventura lhes fariam recordar os ruídos da segunda G. Guerra, quando nesse período eram emigrantes na Bélgica.

O repenicar dos sinos.




Este, também era o tempo da apanha da azeitona, que era bem menos que hoje em dia, já que, também aqui, como era suposto, os maiores olivais pertenciam à Casa Grande, bem como o único lagar de azeite, situado na margem direita da Ribeira de Massueime, logo a seguir ao açude, construído para providenciar e controlar a água para este moinho e o de cereais e onde ainda hoje permanece, mas, evidentemente remodelado.
Às poucas oliveiras centenárias dos camponeses-samarras, foram-se somando outras que, entretanto, iam plantando com as puas que rebentavam dessas. Como ainda não havia toldes, a azeitona, depois de varejada era apanhada uma a uma, com as mãos enregeladas pelo gelo, quer fosse em terra lavrada, no meio da ferran ou hortas. Terminada a apanha numa oliveira ou em várias, se elas eram pertença de vários, era dividida ali; eu em três tenho uma, ou, tenho uma em cinco e essa, muitas vezes, ainda era dividida por dois ou três. Se o monte era grande, era dividido às cestas e se pequeno aos punhados.
Sendo as oliveiras dos samarras poucas, quando quase tudo o que eram terrenos bons pertenciam à Casa Fidalga, elas pertenciam a várias gerações de herdeiros, dai elas também serem centenárias e dividias por muitos. Quem não tinha oliveiras ou pouca azeitona, ia ao rebusco e aqui a sua procura e apanha ainda era mais difícil, pois tinham que meter as mãos em tudo o que era buraco, no meio das silvas ou no meios da ervas bem altas, para procurarem trazer para casa uns quilos desta, para fazerem azeite, necessariamente pouco, ou para a trocarem por este, para a noite da Consoada. No dia a dia, o caldo era temperado com um bocado de banha guardada em sal, a que se dava o nome de unto. A apanha da azeitona no dia da Consoada, estendia-se pouco para lá da hora do jantar, um naco de pão com figos secos ou uma maça, porque sendo o dia o mais pequeno do ano, havia que se regressar a casa ainda de dia, para ir arrancar as couves de cortar e preparar aquela que era a Ceia principal e a mais igual em todos os lares samarras ao longo do ano.
Deixemos esta tarefa que efectivamente é feita nesta época natalícia e em que o resultado desta, o azeite, é figura imprescindível na Ceia, daí termos feita esta deriva e voltemos à protagonista desta crónica a “Ceia de Natal”. O símbolo do Natal começava com a fogueira especial na lareira do lar, à volta da qual a família se reunia para a Ceia. Os pratos principais da Ceia eram:

Migas Recheadas com Bacalhau, para quem nunca comeu, fica aqui a receita samarra, que é muito simples: Colocava-se a panela de ferro ao lado do braseiro na lareira, enchia-se de água para cozer o bacalhau, enquanto se partia o pão de trigo em pequenas fatias; cozido o bacalhau, desfazia-se em lascas e retiravam-se as espinhas. Num alguidar vidrado punha-se uma camada de pão e de seguida uma de bacalhau e assim sucessivamente até à última camada que era de bacalhau, sobre os quais se derramava a água ainda a ferver onde aquele cozeu e abafava-se para se entranhar no pão e bacalhau e amolecê-los. Posteriormente, escorria-se a água não absorvida, se fosse o caso e regava-se abundantemente com uma panelinha de azeite bem quente e alhos que entretanto se pusera ao lume e o petisco estava pronto a ser servido.

Couves de Natal, belos exemplares.

Em simultâneo, também se preparavam as couves de cortar, as couves de Natal, que só têm aquele verdadeiro sabor depois de lhes gear abundantemente em cima. Cozidas as couves, as batatas e as cebolas temos então mais dois pratos:

Couves com Bacalhau e o terceiro, Batatas com Cebolas e Bacalhau, tudo bem regado com o ouro amarelo extraído da azeitona e que fazia e faz parte integrante da Ceia.
As rabanadas de trigo ou centeio, passadas por ovos batidos eram fritas em azeite e polvilhadas com açúcar, também se faziam presentes em muitas mesas. Figos secos, nozes e amêndoas, genuínos produtos samarras bem como a botelha de jeropiga, ajudavam a compor a mesa da Ceia.
Esta era a Ceia em que ninguém ia à cama com a barriga a dar horas, ninguém ouviria as tripas cantarem as lamentações de Jeremias. No entanto, numa família de 6 membros, em que a mãe já falecera, a irmã mais velha, a única rapariga no meio de 4 rapazes, surpreendeu o mano mais novo, ainda garoto, a chorar e pergunta-lhe o que se passa? Ao que o garoto responde: ainda há tanta comida na mesa e eu já tenho a barriga cheia e não posso comer mais!...
Pois!.. Este garoto era um dos muitos, que na maioria das noites se enroscava nas mantas da cama, feita numa tarimba junto dos animais, com fome. Estava-mos na década dos anos 30.
Após a Ceia, uns, os mais novos, passavam pela fogueira de Natal no adro da Igreja, já de tradição vetusta e da qual se retirariam as brasas para queimarem o incenso a oferecer ao Deus Menino acabado de nascer e outros aguardavam em casa a hora da Missa do Galo, pois, como tínhamos prior residente, na casa paroquial, verificava-se sempre e a Igreja ficava repleta de fieis. O último prior residente foi o Sr. Pe. António Nunes ainda entre nós, mas, já não residente na aldeia.
Normalmente, estes três elementos da época natalícia, estavam presentes: nevoeiro ou chuva, o frio com gelo e a lareira com o cepo de Natal, de freixo, oliveira ou carrasco para que durasse muito tempo, à volta da qual se reúnem os Samarras para a Ceia de Natal, que nos enchem de saudade e vontade de voltar à aldeia, porque nos tocam e é nesta época que ali regressam, sempre que podem, os que ali tem raízes.
Boas Festas Natalícias para todos os Samarras, onde quer que as festejem.

Dezembro 2013 (34)
Apaulos

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  1. Gostei da crónica e na minha imaginação ouvi o repenicar dos sinos, pela foto de um dia nublado, de um dia de Natal, cujo som as nuvens ajudavam a estender e a retardar. Belos exemplares de coves de Natal. Por fim restam-nos as saudades. Bom Natal.Obrigado.

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  2. dom manel f. estragou com tudo
    a missa do galo foi-se

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  3. Verdadeiras saudades do repenicar dos sinos e das couves com bacalhau e mais das migas.

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  4. O quanto esse sino me fez feliz!

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  5. E bom recordar e era mesmo assim sr,apaulos; tempos difíceis mas os nossos, daí recordarmos com satisfação a nossa realidade de antanho. obrigada.

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  6. Volvida uma década e recordando tantos Samarras que já nos deixaram, o que se mantem é o significado dos símbolos referidos nesta crónica. Algumas tarefas foram aligeiradas ou abandonadas, por não se tornarem rentáveis, mas o espirito Natalício está lá e a ser vivido pelos poucos habitantes que restam e por aqueles que podem regressar para recordarem e matarem saudades dos tempos que foram os deles, tempos difíceis, mas nossos. Por enquanto, a fogueira de Natal no adro da Igreja é um testemunho vivo dos tempos que foram de todos. Santo Natal. Apaulos

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