O RICO E OS POBRES


Era costume, os pais Samarras convidarem para padrinhos de Baptismo dos filhos, um casal de familiares. Contudo, para padrinho/madrinha do Crisma, ali pelos anos 50/ 60, por vezes, a vontade dos filhos, embora ainda muito jovens, também já se fazia ouvir e até respeitada, ainda que o convite para padrinhos/madrinhas tivesse como perspectiva e consideração a possibilidade de se tirar alguma partida, algum favor por via deste convite; mesmo que esse favor fosse o conseguir trabalho ou uma terra centeeira para trabalhar, em detrimento de outros, se o padrinho era considerado rico. Logo o compadre rico tinha, à partida, algo de interessante a oferecer ao compadre pobre, mas era este quem os escolhia e não o contrário, pois os filhos eram deste e não daqueles e ser padrinho/ madrinha, mesmo de um afilhado pobre era motivo de orgulho para os padrinhos. Quando digo rico, também podemos querer dizer com alguma influência ou com alguma posição mesmo que fosse só a nível local.
Estávamos na época da Sra. da Ajuda, em que parte dos dias eram trabalhados a “cão”, termo vernáculo, para dizer que eram à borla e se conseguissem umas terras, mesmo terras pobres para semearem uns alqueires de centeio dava muito jeito, para assim os ajudar a sobreviver; porque também já nessa altura, não havia pão sem farinha e a farinha já era feita do grão dos cereais, que se cultivavam em terrenos de volta dos barrocos da Fareleira, ou nas colinas da Serra ou da Pardinha, já que as terras boas eram lavradas pelos criados dos compadres ricos, com boas juntas de vacas, bem tratadas, bem alimentadas, enquanto os compadres pobres lavravam as terras fracas, as de tornas curtas e contornavam os barrocos com uma parelha de burras ou uma vitela e um burro, vitela que procuravam amansar e engordar para a levarem à Feira de São Bartolomeu a Trancoso no mês de Agosto, àquela que era considerada à época, a maior feira de gado vacum do país, que os cansavam muito mais, pois não tinham o passo cadenciado e responsável da junta de vacas.
Também os párocos eram convidados para padrinhos, através dos quais, os compadres esperavam conseguir o favor de um aconselhamento e o encaminhamento dos filhos para irem estudar para o seminário ou a ajuda na procura de um emprego em alguma oficina no concelho ou na capital do distrito. Alguns empregos foram conseguidos através dos padrinhos, nomeadamente empregos em instituições públicas, tais como GNR, PSP e outras.
As Sras. professoras também eram solicitadas para madrinhas do crisma de algumas garotas e de certo que, aquela que colocou mais vezes a mão no ombro das afilhadas terá sido a D. Aninhas.

A igreja actual que fez parte integrante da “Casa Fidalga”, como sendo a sua capela 
e que foi cedida à povoação para substituir a Igreja de Santo André.


Os donos da “Casa Grande” eram dos que tinham alguns afilhados e a história que nos foi referida, tem todo o cunho de verdadeira. Vejamos: um dos afilhados de um padrinho da “Casal Fidalga”, após a cerimónia religiosa foi convidado pelo padrinho, para jantar, agora diríamos almoçar, com a família do padrinho naquela Casa tão Grande onde nunca tinha entrado.
Esta casa ainda era governada pelo pulso firme do seu proprietário, o Sr. António Celestino; decorria a década de 50, altura em que ainda tinha uma vida activa, estruturada e organizada em todo o seu vasto território, a começar pelo governo da casa, com um grande número de criados, quer em casa quer nos campos, para cuidarem do palácio, do seu rebanho de ovelhas e cabras e das 4 juntas de vacas para trabalharem as suas terras agrícolas, decerto as melhores do termo da aldeia, os tractores são muito mais recentes.
Do Sr. António Celestino, também o autor desta o recorda a passear-se na varanda granítica de grandes pedras aparelhadas, percorrendo-a de uma ponta para a outra, visualizando os terrenos do seu pomar, a jóia da coroa, à data sem obstáculos visuais à sua frente; qual falcão lá do alto, a guardar o seu território e verificar se algum intruso o invadia e respondendo educadamente a quem passava na rua e lhe dirigia a salvação e ainda o consegue recordar a montar a sua bem tratada égua branca, para percorrer e marcar presença no seu vasto território, que se estendia da Ribeira de Massueime, (lagar de azeite, e colina anexa), Pardinha, Serra, Silveira, Carvalhal, Pedra-Rachada, Lameira de Baixo, Trigueira, Pomares, Moragos, e fechando o circuito nas terras das Ferneirizes, com outras no miolo deste circulo. A pedra onde este senhor feudal montava e descia da sua égua, ainda hoje se encontra à entrada do portão principal da Casa Fidalga.

A cerimónia do Crisma (1994)


O afilhado diz que teria os seus nove anos, enfiado no seu fatinho de alpaca, confeccionado no conterrâneo o “Ti João Alfaiate”, vide crónica “Modistas e Alfaiates Samarras” e gravata a estrear bem como os sapatos, estes comprados na loja do Pardalejo em Pinhel; lembra-se de o Sr. Bispo da Guarda perguntar ao Sr. Prior: este menino já está preparado para receber o Crisma, ao que o Prior respondeu que sim. Em sentido contrário, cerca de 1995, um prior não “meteu” na lista dos crismandos uma menina com 10 anos e ela quando soube pela mãe que não ia ser crismada; foi à sacristia pedir satisfações ao prior e desafiou-o a fazer-lhe as perguntas sobre o Crisma e ele disse-lhe que agora já não podia ser, mas que na próxima cerimónia de Crisma, no ano seguinte, a levaria ao Crisma nas Freixedas. É de realçar o inconformismo, a garra da menina Samarra, que se achou injustiçada e desfiou o pároco pelo seu esquecimento.

Ao afilhado, o padrinho orgulhoso e qual cicerone, mostrou-lhe parte da casa e diz que, o que mais o impressionou foi a cozinha pela sua dimensão e aquela lareira e chaminé que era maior que a sua cozinha inteira e que mais tarde a havia de a comparar à cozinha do Palácio da Vila, em Sintra. E aqueles tetos todos pintados, nomeadamente o da sala onde estavam a jantar e ele ali a olhar para aquelas pinturas, que seriam barrocas, sem se atrever a perguntar o que significavam. Tudo isto em contraste com o céu azul ou cinzento, que via pelos buracos das telhas meias levantadas da sua cozinha, para funcionarem como chaminé, o que, diga-se, era comum na maioria das cozinhas samarras daquela época e que à noite permitiam que o luar se infiltrasse e que servia de candeia; aqui o azul/cinza do céu era parte do tecto da sua casa, quer quando adormeciam, quer quando acordavam, por vezes, com a luz do sol. Os buracos no telhado também lhes permitiam contar as estrelas para adormecerem, quando com os seus irmãos dormia na tarimba da corte do “vivo”, tendo como enxerga, uma facha de palha bem escolhida, mais grossa, para se aguentar mais tempo e tendo o cuidado de a expurgar do grão de cereal, para não atrair os ratinhos e no breu e silêncio da noite, os manos adormeciam com o ruído do ruminar das vacas, como os tuaregues no silêncio do deserto a ouvirem a ebulição do chá a ferver.
Desculpe!.. Pela sua cara está a dizer que não acredita?.. Então acha que é ficção?.. Bem.., sabe!.. Então pergunte aos seus avôs ou bisavôs. Já não é possível!.. Então só lhe resta acreditar se é gente de fé, pois os seus avôs foram as duas coisas; foram os garotos/jovens que dormiram com as ceroulas nas palhas e foram homens de fé.

O padrinho, já orgulhoso do afilhado, apresentou-o à família e diz que se lembra muito bem do pai do padrinho o Sr. António Celestino, o patriarca da família e das suas graciosas manas as professoras D. Zulmira e D. Alicinha, esta ainda solteira e a D. Zulmira já casada e que o marido era das Souropires, sendo conhecido por “o morte” e quando se deslocavam à aldeia, faziam-no numa potente moto, o que era motivo de admiração para os garotos Samarras. O padrinho tinha mais duas manas a D. Caetaninha e a D. Marquinhas. Os seus dois irmãos, o Américo tinha emigrado para o Brasil e o nosso conhecido Manelzinho, vide crónica das “Tabernas Samarras”, emigrara para África - Moçambique, mas retornou à aldeia que o viu nascer ainda em vida, o que não aconteceu ao que emigrou para o Brasil. Consta que a matriarca da família terá morrido afogada num dos poços do pomar, quando estava a lavar roupa. A D. Alice ainda se encontra entre nós.

Dialogo, de premonição, entre o rei da capoeira e o desanimado peru.


Chegada a hora do jantar, o garoto Samarra tomou lugar à mesa ao lado do padrinho, com toda a família daquele e contam-nos que o jantar começou com uma canja de peru com hortelã, aquelas quintãs eram habitadas por muitos e grandes perus em ameno e pacato convívio com os galináceos e patos marrecos para que não levantassem voo. Os perus, de vez em quando, escapavam-se para fora das quintãs e era vê-los a devorarem as ortigas de volta dos paredes dos caminhos, para tirarem o fastio e terá sido um destes que foi sacrificado e que passou pelas panelas e fornos daquela enorme cozinha, antes de ser servido à mesa, naquele dia especial em que o Sr. Bispo da Guarda visitou a aldeia para Crismar as garotas e garotos Samarras dos anos 50.
Também era costume, os padrinhos oferecerem prendas aos afilhados, este ofereceu ao seu novo afilhado uma aliança de ouro, diz ele, que lhe ficava a bailar no dedo e para a usar de vez em quando, sem risco de a perder, encheu-a com linhas num dos rebordos, ocultando assim as linhas até o dedo engrossar.

O cabritinho da Páscoa


Pela altura da Páscoa, os afilhados cujos pais tinham algumas possibilidades, ofereciam aos padrinhos o tradicional cabrito da Páscoa. Esse garoto Samarra, afilhado de um dos filhos do patriarca da “Casa Grande”, havia de voltar ao mesmo salão, pouco tempo depois, para dar os pêsames a toda a família, aquando do falecimento do “ Homem Grande”, o que caiu bem e foi motivo de admiração de todos quantos faziam o velório e reportam-nos que com o seu desaparecimento começou o desmoronamento do império da “ Casa Fidalga”.

Esta crónica tem como protagonistas um afilhado e um dos padrinhos da “Casa Grande”, mas é o retrato de muitas outras conivências entre compadres samarras, afilhados e padrinhos daquelas épocas. Será que nos dias de hoje, por vezes, os padrinhos não são escolhidos tendo como intenção os princípios de antanho?.. “Viver não custa o que custa é saber” e se custava!...
O estatuto de compadres, na hora de se tratarem, permitia ao compadre pobre tratar o compadre rico de igual para igual e era compadre para cá, compadre para lá. Viva compadre!.. Compadre viva.

Padrinho, faça o favor de me dar a sua bênção!.. Deus te abençoe afilhado.
Esperamos com este pequeno subsídio, ajudar a manter vivas as tradições Samarras dos nossos tempos de garatos.


Abril 2014 (39)
Apaulos


6 comments Blogger 6 Facebook

  1. António,parabéns.Ótima crônica,como sempre.

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  2. bela crónica, mais uma. Por falar em padres, então o nosso chega tarde à missa, alguém corajoso o chama atenção por isso e ele responde que se quiser que se vá embora. E outra, então os casais que estão juntos não podem comungar. Cada vez que venho à minha aldeia recebo sempre notícias destas. E pra evitar polémicas aponto o dedo unicamente a este padre que cada vez está mais longe do povo e a ninguém mais. Saudações samarras.

    Luis

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  3. e o padre presidente da mordomia das festas já apresentou contas da festa da ermida? Já nomeou a nova mordomia? É a mesma mordomia do ano anterior? Porquê? Qual o papel dos que dão esmolas para a festa? Boa Páscoa este ano infelizmente não vou poder estar ai. Brijos.

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  4. Este mais parece um bode, pai do suposto cabritinho, não será Apaulos? Bode ou cabritinho aparte, gostei da crónica, parabéns. Será que ainda arranja temas para mais? Fico a aguardar.

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  5. Algum destes rapazes ou raparigas que se crismaram nesta cerimónia são da Aldeia Samarra?
    Boa Páscoa

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  6. Delicias do nosso temo de garotos, que este ilustre Samarra,nos recorda. Bem-haja.

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