MODISTAS E ALFAIATES SAMARRAS DESDE FINS DO SÉCULO XIX.

Hoje se queremos adquirir uma peça de vestuário, interior ou exterior, vamos a um pronto-a-vestir, procuramos, miramos, escolhemos, provamos e se aprovamos, pagamos e pronto. Mas nem sempre foi assim, sobretudo nas aldeias do interior e por consonância também na Aldeia Samarra. 
Porque não existia o pronto-a-vestir e quando estes artigos começaram a aparecer por cá, nas feiras e mercados, em contrapartida aos tendeiros que nos visitavam com os seus panos crus, panos de chita, cobertores de papa e uma ou outra fazenda e os expunham nos Largos da Torre, ou da Igreja e porque também não havia dinheiro para os adquirir, as modistas continuaram a dar ao dedo. 
As modistas samarras, as nossas mães e irmãs, que com imaginação e criatividade procuravam inovar àquilo que aprenderam com as mães e avós, produzindo autênticas peças dignas de criadores de moda e assim vestiam toda a família dos pés à cabeça. 
Era vê-las, nos dias soalheiros de inverno nas escadas do balcão ou nas soleiras das portas, de meadas de linhas ou novelos de lã na cesta da costura o “açafate” e agulhas de tricotar nas mãos, para entrelaçarem os fios que faziam passar por trás do pescoço ou pelo alfinete de dama, que pregavam no peito sob os ombros e que, com mestria, puxavam com o dedo médio, à medida que as agulhas consumiam os que já lhe passaram, num ritmo pendular que sempre me fez confusão e a meia que já passara de meia-meia ia crescendo, ou a manga da camisola ficava pronta para a prova, ao mesmo tempo que se punha a conversa em dia.
Elas transformavam os metros de panos, que compravam aos tendeiros, em “cueiros”- fraldas, para os seus bebés; “Dorme, dorme meu fedelho, que a mãe logo vem, foi lavar os cueirinhos à fonte do concelho”; Cuecas, ceroulas, camisas, calças para os filhos e marido, blusas, saias e saiotes, corpetes, coletes, combinações e outras peças íntimas para as filhas, algumas das quais ainda eram bordadas com todo o carinho.

Até ao aparecimento da máquina de costura Singer em 1850, todas estas peças eram feitas e cosidas à mão, verificando-se uma entreajuda entre as irmãs ou cunhadas menos prendadas, para estas tarefas e enquanto umas ajudavam na costura, outras ajudavam nas tarefas do campo. Efectivamente, em 1850 Isaac Singer, regista a patente de uma máquina de costura, a sua Singer, que aos poucos modificou muitas das tarefas enfadonhas da costura à mão.

Máquina de costura Singer, para costureira e alfaiate e respectivos dedais centenários.

Também havia as costureiras profissionais, mais habilitadas, a quem as moças ou mulheres recorriam para a feitura de uma peça mais cuidada, uma peça domingueira ou festiva, uma peça de moça namoradeira ou o fato de noiva.
A necessidade aguçava o engenho e a arte das mulheres samarras e a sua criatividade eram constantes, quer fosse na feitura de uma peça nova ou na transformação de uma peça usada, para o irmão que viera a seguir. Quando a peça já não era susceptível de ser recuperada, mesmo com remendos, era desmanchada e feita em tiras de farrapos, que depois de enoveladas iriam para as tecedeiras da aldeia tecerem as famosas mantas de farrapos, que nos ajudavam com o seu peso a aquecer na cama nos dias frios de inverno, quais edredões dos tempos modernos e ainda, tapetes, passadeiras, alforges e outras peças.
Mas, pasmem, os artigos mais nobres eram: Panos, toalhas de rosto, ou de mesa de jantar, toalhas para os altares da Igreja e lençóis nupciais, eram os artigos de linho, genuinamente samarras; Desde a sementinha que era lançada à terra, até à sua confecção e utilização final.
O linho era semeado, mondado, criado, arrancado, colocado em molhos na ribeira durante 8 dias, para ficar dondo e pronto a ser espadeirado, sendo depois fiado e dobado, posto o que ficava pronto para ir para os teares samarras, onde eram confeccionadas as referidas, belas e nobres peças de linho e muitas delas ainda eram bordadas à mão, o que as valorizava.
Como vemos o processo era longo e trabalhoso, mas era um património dos nossos maiores, daí estas peças artesanais, serem autênticas relíquias para quem as possui. Além das mães modistas samarras, umas com mais engenho que outras, ficam aqui os nomes de algumas costureiras profissionais; As tias Glória, Albertina Tenreiro, Maria de Deus, Adelaide Paula, Eduartina Silva, Carmelinda dos Santos, Bernardete Tenreiro e Umbelina Tenreiro, estas duas cunhadas e entre nós.
Das tecedeiras, ainda podemos recordar, as tias Palmira Fernandes, Patrocínia Machado, Umbelina Silva, Eufémia Tomás e Ermelinda Silva.

Quanto aos alfaiates, era neles que os nossos pais mandavam fazer o fato para a primeira comunhão, que dava para o exame da quarta classe, como podemos ver nos 4 rapazes e 4 raparigas na foto do exame da 4ª.classe, na crónica, “Os garotos samarras e os miúdos de hoje”, para quando estávamos a estudar, para as festas e para irmos à inspecção “as sortes”, ou para levarmos a noiva ao altar. Um fato que se prezasse era composto das 3 peças, calças, colete e casaco, que os alfaiates samarras executavam como ninguém, pelo que não tinham mãos a medir, pois também trabalhavam para as aldeias vizinhas.
Como recordamos de outras crónicas, a aldeia tinha muita gente e chegou a ter três oficinas de alfaiataria e todos trabalhavam com a colaboração do agregado familiar nas tarefas mais simples, as de alinhavar, chulear, pregar botões etc., ficando para o mestre alfaiate as tarefas especiais de corte e provas.
Em homenagem a estes mestres alfaiate, ficam aqui os seus nomes; Jacinto dos Santos, que nasceu no Juízo, um samarra por adopção no casamento, iniciou a actividade na década de 1880, com oficina na Rua do Meio, esquina com a Rua Direita, a quem sucedeu na arte o seu filho José dos Santos Silva, o “ti Zé Alfaite” que nasceu em 1900 e trabalhou até 1955, enquanto a saúde lho permitiu e com oficina na Rua Direita, 31, após a construção do prédio actual. Aqui na foto, com 70 anos e tirada em 1970 no dia do casamento do seu filho Ricarte. Um verdadeiro gentleman.

ti Zé Alfaiate, em 1970.

Na oficina deste samarra que foi uma verdadeira escola de alfaiates, formaram-se outros alfaiates samarras e de fora, nomeadamente os alfaiates, ti João Monteiro, bem como os filhos do mestre, do qual é digno continuador o seu filho Ricarte S. Silva, que em 1967 após cumprir o serviço militar na guerra do Ultramar, se mudou para a cidade de Coimbra, onde continua a vestir os doutores desta capital universitária e a espalhar o perfume da arte dos alfaiates samarras, com estabelecimento na Av. Emídio Navarro, 56, r/c, Coimbra.
O ti Gualter Tenreiro também se mudou para Lisboa por volta de 1968, onde continuou a trabalhar e o ti João Monteiro, hoje com 88 anos, após vestir milhares de conterrâneos, em 1970 estabeleceu-se na zona de Lisboa, para poder acompanhar os filhos nos estudos universitários, enquanto continuou a exercer a arte. Hoje, já aposentado, fixou residência na zona de Esposende, indo na senda de alguns dos filhos.

O ti João Monteiro e o tempo de aposentação.

Esta outra foto, de João Monteiro, uma preciosidade para álbum de família, demonstra quão calmas eram as ruas da aldeia, mesmo na artéria mais movimentada, podia-se trabalhar à porta da oficina, pois os carros de bois eram sabiamente conduzidos pelos homens da aguilhada e os automóveis ainda não se cruzavam nestas artérias calcetadas com seixos das terras da Figueireda, que só uns anos mais tarde começaram a ser afagados pelos pneus do chevrolet do ti Augusto Carapito, que tinha a estrada toda para si.

ti João Monteiro

Foram eles que confeccionaram os nossos fatos, casacos, sobretudos, blusões e as indispensáveis Samarras.
Com o pronto-a-vestir mais acessível e com as poucas vocações jovens para a agulha e o dedal, os alfaiates são cada vez mais raros.


Maio 2013 (22)
Apaulos



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  1. grandes recordações. Emocionei-me

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  2. Uma aldeia com vida. Apesar de terem sido tempos duros e difíceis.

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  3. Mais uma ao estilo do autor que agora resolveu,de vez em quando, por a nossa sensibilidade à flor da pele. Permitam-me:que bem ficaria aqui a foto do alfaiate ainda em actividade, que muitos dos que lêm esta crónica não o devem conhecer. Apaulos,continue a relatar-nos os factos que foram de outros tempos na nossa aldeia, para que nos revejamos nela, onde quer que nos encontremos. Parabéns.

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  4. como diz o Tonho, o João da Roupa...

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    1. não é desrespeito nenhum Anónimo. O Tonho conhece toda a gente, claro, e quando e às vezes quando se quer referir ao Sr. João Alfaiate ou alguém da família, não se lembra do nome alfaiate e diz João da Roupa… Respeito, sempre!

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  5. A foto do Ricarte Silva não aparece, porque preferiu dar primazia ao seu progenitor e mestre.
    Abraço.

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  6. onde posso arranjar hoje uma samarra?

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  7. É sempre com grande sensibilidade e por vezes com muita emoção que leio estas crónicas do Apaulos ou de qualquer outra pessoa que as escreva, porque fazem parte da minha infância. Esta, concretamente diz-me muito, porque cresci, por assim dizer, na Alfaiataria de João Monteiro (meu tio-padrinho), onde tirei muitos alinhavos e onde esperávamos, impacientes, que o carrinho de linhas terminasse, para o aproveitarmos para fazermos os nossos próprios brinquedos.....

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  8. Estas crónicas avivam a nossa memória que já não é de elefante e por isso necessita delas. Continuem se puderem que os Samarras devoram tudo, não é CR52???

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