A vida dos pastores era dura e nem aos domingos ou feriados conheciam descanso, pois estes animais requerem uma refeição de cerca de 7/8 horas diárias; era uma vida solitária entre eles e o rebanho, com frio de gelar os ossos nos dia de inverno ou o calor insuportável do verão, dias de chuva ou nevoeiro de não ver um palmo à frente do nariz e a responsabilidade de não perderem qualquer rês.
Quando ainda todos dormiam, eles, de madrugada, cruzavam as ruas da aldeia com destino às pastagens, acordando-nos, com o tilintar dos chocalhos de cobre no pescoço das cabras, que seguiam o pastor à frente com o cão rafeiro e dos carneiros, neste caso 2/3 por norma, misturados no meio das ovelhas e o balido dos cordeiros a que as mães replicavam e que, com dificuldade as procuravam acompanhar. Sendo a ovelha um animal de carácter gregário, dificilmente saia da fila, não se dispersava e a procissão era fechada pelo fiel amigo que se encarregava de não deixar ninguém para trás.
Também os cães rafeiros, procuravam quebrar o silêncio da madrugada, mas o cão pastor, não lhes ligava desde que se mantivessem à distância e se limitassem a assinalar a sua presença de cão de guarda. Já o seu colega do rebanho, também ele rafeiro, nem sempre se continha.
O pastor, com o seu cobertor de papa colorido, ou palhoça de juncos que o protegiam do frio, mais aquele, e da chuva que escorria por eles abaixo, calças de surrobeco, o cajado ou aroçadoira, saco da merenda e o fiel amigo, por vezes um valente Serra de Estrela com o pescoço adornado por uma coleira de ferro com pregos, o que lhe dava mais garantias de bem se haver com os lobos, quando ameaçavam o rebanho, ou com os seus atrevidos pares: eram partes integrantes do rebanho.
Os pastores de uma maneira geral não eram donos dos rebanhos que guardavam, quando muito tinham direito à forra, isto é, era-lhes permitido trazerem no rebanho umas poucas ovelhas de sua propriedade. Predominava a ovelha da raça galega, por ser a que melhor se adaptava à região e sobretudo brancas, as pretas eram sempre uma minoria, embora se dissesse que a carne de cordeiro de mãe preta, sabia a cabrito.
Eram rebanhos orientados mais para a produção de carne, com a venda dos cordeiros e de ovelhas com cerca de 6 anos, consideradas velhas, daí por norma, o pastor ter uma percentagem na venda dos cordeiros, para que assim potenciasse o seu nascimento e engorda; já o leite, de Março ao São João, destinava-se apenas ao fabrico de queijos artesanais, para os proprietários e família do pastor, depois deste período era para as mamadas dos cordeiros. Havia ainda os proventos da venda da lã, sendo os ovinos tosquiados no verão, para que chegado o inverno já pudessem ter o seu cobertor de protecção.
Estávamos longe de indemnizações compensatórias como nos dias de hoje.
O pastoreio fazia-se, de uma maneira geral dentro dos termos da aldeia, e de acordo com a folha isto é, de acordo com as terras em poisio dos cereais, onde se cultivava sobretudo o centeio, em terras dos proprietários dos rebanhos, nos baldios dos lameirões do Defarelo, Cachaça, Lameira de Baixo e Terras da Confraria, pelos caminhos e pastos arrendados. Alguns habitantes samarras tinham a sua cabra ou ovelha para poderem ter algum leite e na expectativa de terem um cabrito ou borreguito para venderem ou para consumo próprio pelas festas, sendo sobretudo alimentadas na corte em conjunto com o outro “vivo”. Na época da cobrição, eram integradas num rebanho, até serem cobertas pelo bode ou carneiro; em contrapartida, os seus donos, cediam alguns pastos.
Um bom rebanho poderia ter à volta de 100 ovinos e caprinos e não tinha mais do que dois ou três carneiros para montarem ou cobrirem as ovelhas, para não perderem muito tempo em lutas entre si. O andar cadenciado do pastor, em pastoreio de percurso, era feito de acordo com os pastos, pastando e andando ou mais apressado se o pasto era escasso ou se de regresso.

Um rebanho que podia ser um rebanho samarra





As mulheres samarras, por volta da hora do almoço, jantar à época, procuravam o seu marido ou filho, escutando o chocalhar do rebanho e assim determinarem o sitio certo onde este pastava, com um tacho de batatas ou um púcaro de caldo, quando aqueles não levavam o farnel com um naco de pão, ou quando andavam mais longe. Por vezes, para matarem a fome, ordenhavam as cabras para um caneco para entreterem o estômago e para uma poça que faziam no chão para alimentarem o cão.
Quando acontecia surpreenderem um coelho na toca ou o cão apanhavam um, ou uma perdiz no ninho, ou uma ave de porte, faziam um pequena fogueira, assavam-no e a refeição para o pastor e o fiel amigo estava garantida. Navalha, fósforos e sal, nos bolsos dos pastores, faziam parte dos acessórios destes.
Ainda podemos ver algumas cabanas de pedra como a da foto onde os pastores se procuravam abrigar das bátegas de água.

Palhoça usada até aos anos 50/60 

Cabana de resguardo

Já as cabanas onde passavam a noite, enroscados no mesmo cobertor que os protegia durante o dia e com o cão rafeiro a aquecer-lhes os pés, enquanto o Serra da Estrela, em campo aberto, procurava uma sentinela estratégica para proteger o rebanho e descanso do pastor; eram amovíveis e compunham-se de três paredes com estrutura de paus, cobertas de giestas, palha ou juncos. O curral era de cancelas de paus e mais tarde já de ferros tubulados. As ovelhas, por vezes, também se abrigavam nos acarradoiros, sobretudo do calor, que podiam ser sob um barroco, uma laje ou à sombra de um grande castanheiro ou carrasco.

Um emigrante Samarra, volta do Brasil às suas origens e dado que a sorte não lhe terá surgido, nas terras do pau vermelho, ao voltar ao torrão natal é alcunhado de brasileiro pobre e como tal ficou conhecido.
Como voltou pobre, apenas com uma pequena mala onde transportava todos os seu haveres, também não foi reconhecido, em vida, ou pelo menos não terá sido bem recebido por alguns primos que aqui deixara e recolheu-se a uma casa, daquelas de pedra sobre pedra que já herdara dos seu avós, ali pelo Outeiro, onde dormia e guardava a suas poucas ovelhas que entretanto veio a comprar. Valeu-lhe um primo o Ti José Tomás, em casa de quem matava a fome. Passava os dias a pastorear as suas cerca de uma dúzia de ovelhas, um pastoreio de percurso pelos caminhos e campos baldios, até que um dia, cerca da Dezimeira, foi malhado por alguém, talvez por as ovelhas terem pisado um terreno não baldio. Dizem que essa malha que na altura o deixou muito mal tratado naquele local, até ser descoberto pela família que lhe deu algum acolhimento e o manteve em sua casa até ao seu falecimento, terá sido a causa imediata da sua morte.
Os outros primos que não o acolheram, após a sua queda, ter-se-ão apressado a repartir os poucos haveres que deixou, umas terras. As ovelhas foram vendidas de surpresa, numa feira em Vila Franca das Naves, após uma pançada madrugadora de ferrem na zona da Ermida, tomando em seguida o caminho de Vila Franca, via Veia Cova, no sentido de não levantarem suspeitas.
O dinheiro desta venda terá sido utilizado para ajudar a custear as despesas do funeral. Este caso de triste recorte, que nos traz à memória a “Santa Eufêmia dos Fidalgos, Santa Eufêmia dos Malvados”, ocorreu nos primeiros anos da década de 1960.

Um rapaz Samarra de cerca de 15 anos adquiriu uma borrega por 30$00 (0,15 cêntimos) a qual cresceu no meio do rebanho de seu pai. O dinheiro para a compra desta rês foi ganho com a venda das pepitas de minério de estanho que apanhou atrás da rabiça do arado e de “lenticão ou cornazoilo” que se procurava nas espigas do centeio, ali pelo mês de Maio até às segadas.
Estes dois produtos tinham procura, eram vendidos a uns forasteiros e para quem não tinha onde ganhar uns tostões, o que vinha por esta via dava um jeitão.
A borrega que já estava apta a ser ovelha foi vendida na feira que se fazia na aldeia, no local onde funcionou a escola primária, pelo pai do rapaz, por 60$00 (0,30 cêntimos). Aquelas 3 notas de 20$00, cor de alface, pelas quais foi vendida, eram tudo o que pensava ser o seu pecúlio; no entanto, nem chegou a ver a cor ao dinheiro, mágoa que ainda hoje recorda.
Decorria o ano de 1952. Este Samarra veio a emigrar para França em 1966, e hoje reside na Zona de Setúbal.

Andavam dois irmãos, o mais velho com cerca de 12 anos, com o rebanho no sítio do Carmelo, o local mais afastado da aldeia, onde o rebanho devia dormir no curral ao ar livre, para estrumar as terras, cujas cancelas eram deslocadas paulatinamente cada dia, para assim com este adubo orgânico procederem à sua fertilização. Ao anoitecer diz o irmão mais velho, para o mano com cerca de 7 anos: vá, vai embora, que o pai não quer que as cabras durmam no curral com a chuva que aí vem. Deitaram as cabras fora do curral e o garoto, já no breu da noite pôs os pés a caminho na convicção de que as cabras seguiam à sua frente. Quando chegou a casa o pai pergunta-lhe pelas cabras e o garoto inseguro responde: estão na corte “curral”, ao que o progenitor responde, vai já a procura delas, que não estão na corte e o garoto em plena noite e debaixo de chuva, voltou novamente a caminho do Carmelo, debruçando-se de vez em quando, para com as mãos tactear e certificar-se se ainda estaria dentro dos carreiros/caminho pedregoso na maior parte do seu percurso.
Ao chegar ao Carmelo é recebido pelo cão que o reconheceu à distância e o irmão pergunta-lhe o que estava ali a fazer, o pai mandou-me vir a procurar as cabras, pois elas não foram para a corte, ao que o mano lhe responde: tira a roupa e embrulha-te aqui na manta e manda “quilhar” as cabras e o rafeiro deitou-se aos seus pés. De manhã verificaram que as cabras ao saírem do curral, foram-se enfiar num outro curral ali perto. O garoto mais novo é hoje o ancião da aldeia e este episódio passou-se nos longínquos anos de 1926.

Diz o pastor para o garoto samarra, atiça lá o carneiro, este feito toureiro, começa a atiçar o carneiro com: aahs, aah, aah e este que não gostava de ver os seus chifres enxovalhados e logo por uma amostra de gente, não obstante ser filho do dono do rebanho, o carneiro recua e avança, torna a recuar e com mais balanço avança para o garoto deitando-o ao chão. O antídoto para não levar a marrada que o atirou ao chão, era antecipar-se ao carneiro e deitar-se ao chão. Diz o pastor que o carneiro não investe contra o inimigo quando no chão. Ora, esta técnica só foi ensinada ao garoto samarra pelo pastor após a vingança do carneiro. Tanto o pastor como o garoto são dois samarras com cerca de 73 e 68 anos e que se recomendam.

Este outro garoto, à data jovem pastor ocasional, pois estava a substituir o pai, não teve tanta sorte quanto o anterior. No período do cio das ovelhas, período em que aceitam ser cobertas pelo macho e que dura de 24/48h00 e se repete a cada cerca de 18 dias, até ficarem gestantes; o carneiro não querendo perder a oportunidade de expandir a sua prol, em concorrência com os seus dois pares no rebanho, queria fazer o seu trabalho junto das jovens borregas; mas, o jovem pastor ciente do seu trabalho, contrariou-o para tentar proteger as borregas, que, não obstante atingirem o cio aos 6/7 meses, só devem ser cobertas por volta dos 12/15 meses, enquanto o macho pode começar a montar aos 12 meses. O cio nos ovinos ocorre ali por Janeiro a Abril, para que os cordeiros que nascem cerca de 150 dias depois da cobertura, ainda apanhem um bom tempo nos primeiros dias de vida.
O carneiro desperta para a monta com o cio da fêmea. Os borregos, não destinados à reprodução, devem ser castrados nos primeiros 10/15 dias de vida, para que engordem melhor. Um carneiro sem chifres é sinal de degeneração da raça, o que não era o caso do carneiro desafiado pelo jovem pastor, pois tinha um vistoso par de chifres.
Ao assumir a sua responsabilidade, na defesa das borregas, comprou uma luta séria e feia com o carneiro, ali pelas terras da Confraria onde pastoreava o rebanho. O carneiro ao ser contrariado responde com sucessivas investidas e marradas ao pastor que já partira o cajado no focinho do carneiro, mas ele que não era fujão e com o sangue quente a escorrer-lhe pelas narinas, mais se enfurecia e com os seu mais de 40Kg continua a recuar e investir contra a amostra de pastor, enquanto o rebanho se afastava a pastar, ficando os dois no campo de batalha, valendo ao jovem um meroiço de pedras no meio do qual crescia um carrasco para onde subiu e trepou até acalmar a raiva do carneiro.
A este, em nada adiantou a táctica do pastor, sugerida ao garoto do episódio anterior, embora este a conhecesse.
Mais um Samarra temperado no tempo dos Pomares das Macieiras, que em 1975 veio a emigrar para a grande terra dos carneiros selvagens o Canadá, onde, com muito trabalho alcançou o sucesso e ali se mantêm.

Novembro, quinta-feira, tempo e dia de caça, um caçador cruza-se com um pastor, ali pelo Valdazinha e pergunta-lhe: quais são as melhores ovelhas para reprodução, as brancas ou as pretas? As brancas. E as pretas? Também. E diga-me, quais as que dão menos trabalho em termos de pastagem, quais as mais robustas? As brancas. E as pretas? Também. Muito bem; diga-me e quanto à lã, quais as que dão melhor lã? As brancas. E as pretas? Também. Porque é que responde sempre da mesma maneira às minhas questões? O Sr… está a gozar comigo? Não Sr… Então? É que as brancas são minhas. E as pretas? Também. Ficam aqui algumas lembranças samarras, para que o passado se torne mais presente.


Outubro 2013 (31)
Apaulos

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  1. Também conhecido por Pastorinho e de seu nome João Lourenço. Esta teve uma fim triste, mas também ela faz parte das histórias Smarras. Parabens

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  2. Relatos desconhecidos para a maioria. Muito bem. Antigamente apanhava-se a azeitona uma a uma, e os famosos nevões de 15 dias, que isolava a aldeia, seria interessante crónicas sobre essas vivências.

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  3. já tinha visto estes montes de pedras mas não sabia qual o seu objectivo

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  4. Parabéns António Paulos.Ótima crônica.

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  5. Andavamos três garotos na Lameira de Cima com o vivo. Vem além o pastor, vamos dizer-lhe para pôr os carneiros às marradas, um com o outro. Oh Sr. A.....! Ponha lá os carneiros à luta! Está bem, eu ponho os carneiros à luta um com o outro, mas primeiro vocês, têm que lutar uns com os outros. Está bem, nós lá nos engalfinhámos uns com os outros e no fim o pastor diz, agora já é tarde e tenho que ir embora fica para outro dia. E nós com alguns palavrões à mistura ficámos a ver o rebanho a afastar-se!.....

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    1. ahahah.. está boa.

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    2. na Lameira de Cima também foi avistado um a jogar ao esconde-esconde com um asno. Enfim, outros tempos, outras vontades.

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    3. ui, esse campo de actuação é perigoso.

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  6. A Lameira de Cima foi palco de muitas histórias de garotas/os Samarras, em face de ser o local que mais lameiros tem no termo da aldeia e para o qual, sobretudo aos domingos, aqueles levavam o "vivo" para comerem nos ditos lameiros e como estes são todos delimitados com muros ou arame farpado, os garotos podiam juntar-se e conviverem. Hoje está a ficar um local sinistro e medroso, dado que aqueles lameiros estão cheios de freixos, giestas e silvas , tornando-o num local fechado em contrapartida a um local arejado e aberto que pemitia expraiar a vista até à Moita Redonda, Paúl e Fareleira. Ao fim da tarde, como foi referido noutra crónica, regressavam à aldeia em procissão bovina e com a jericada á frente.

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    1. É bem verdade, lembro-me bem do que aquilo era, mesmo sendo mais novo, e o que aquilo é actualmente... saudades do frio da relva molhada, do contacto físico entre amigos, do cheiro das vacas, das moscas, das ovelhas coxas, de um joelho esverdeado, dos calos nas mãos, das varas de freixo, tudo sem computadores nem telemóveis...

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  7. Mais um mimo de histórias dos nossos tempos de garotos,se não fosse este binómio de "Blog e Apaulos", como é que nos poderiamos deliciar com estas verdades Samarras de há meio século!!!!

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