DA DECRUA ÀS MALHAS EM TERRAS SAMARRAS, 
VENHA COMIGO!

Vamos desarrumar as gavetas das nossas recordações: As alfaias agrícolas para estas tarefas eram: o arado de pau com relha de ferro temperadas nas forjas dos ferreiros Samarras, as avecas/aivecas de pau presas à rabiça com um prego especial, de fácil mudança, e espetadas na parte superior no mexilho de ferro, que atravessava a rabiça e que permitiam o perfil do rego; a charrua de ferro, a grade, o jugo e a canga, as moleias, os carros de bois; umas complementavam as outras e todas de tracção animal. A carroça aparece muito mais tarde, embora a possamos admirar no museu de Aswan no Egito e já desde o tempo dos Faraós; aliás o berço de muitas outras invenções e é por isso que eu me permito sugerir que, quem quer começar a correr o Mundo, deve começar pelo Egito; a enxada, a foice de aço e dedeiras, o mangual, estas para serem manejadas pelo braço do homem e outros acessórios nomeadamente: ancinho, forcada, pá de madeira, o alqueire, vassoura de rabos ou de giestas, todos utensílios a serem utilizados nesta nossa peregrinação ao passado samarra.

O tempo dos facões e machados de sílex, foices de madeira com pontas de pedra incrustadas já pertenciam ao passado, mas o advento dos tractores e máquinas agrícolas que hoje conhecemos, ainda não tiravam o sono aos aldeões Santaeufemenses. Nos séculos anteriores e até ao primeiro quarteirão do último, os cereais de pragana: centeio, o pouco trigo, dado que as terras eram fracas para a sua produção e o adubo ainda não era conhecido por aqui e a cevada; foram, a par das castanhas a base do sustento das gentes Samarras. Enquanto as castanhas foram substituídas pelas batatas, os cereais de pragana continuaram a ser cultivados, para hoje o seu cultivo estar praticamente abandonado. A falta de adubo era suprida pelo adubo orgânico dos rebanhos, que acarravam durante a noite nas terras a cultivar, como foi referido na crónica dos “Pastores Samarras”.
O trigo, terá sido domesticado pela 1ª vez em Jericó cerca do ano 9.000 aC. e terá chegado à Península Ibérica nos anos 5.000 aC.. Após várias alterações, obteve-se o trigo comum com 21 cromossomos. O pão, feito com fermento e cozido em forno de lenha, foi invenção egípcia, cerca de 5.000 anos aC. A aveia e o centeio aparecem cerca do ano 3.500 aC. no Norte da Europa. Já o milho, cereal muito apreciado hoje em dia, surgiu cerca de 4.750 anos aC.

Desde o lançamento do grão à terra, até o levar do pão à mesa, todos os processos eram tratados na aldeia Samarra. 
As folhas eram divididas em dois termos, a folha de baixo e a folha de cima, para que assim todos os anos se pudesse semear e colher o cereal imprescindível ao sustento das famílias e recolha de palha para os animais. Era uma cultura bienal, um ano semeava-se a terra, no outro ficava de poisio. 
Os terrenos aráveis mais pobres eram semeados com centeio e a primeira tarefa para o cultivo destes, começava com a preparação das terras: a decrua, que era o primeiro arado que se dava às terras que estavam de poisio desde as segadas, para que com o seu restolho ajudassem a alimentar os rebanhos e o outro vivo, até esta lavra que ocorria nos primeiros meses do ano.
Dizia o “Ti Xico Manel”: oh, ooh, oh prima, o o parceiro está? (tinham sido parceiros de mordomia na festa de Santa Eufêmia) Não Sr. foi para a Serra a decruar. Ah, ah, ah, ah sim, se se eu saabia também eu eu tinha ido. A Serra era um lugar algo medroso em dias de nevoeiro aí por Janeiro ou Fevereiro, quando ainda pontificavam os pinhais que os incêndios devoraram, e sabia bem sentirem que não andavam sós, quando ouviam a voz de alguém a incentivar as burras ou as vacas a chegarem ao fim da torna, ou o bater da aguilhada no tamão do arado, sinal de que o parceiro ainda ali andava, o que dava algum conforto. Aqui na Serra o “Ti António Xincalhão”, quando via a sombra dos pinheiros do alto da Pardinha a reflectir-se na poça do seu terreno, arrancava logo e quando chegava ao cima da colina e ainda via o sol alto, não sabia se voltava para trás ou se regressava a casa. Perguntava ele à comadre; o compadre? Foi para Pedra Rachada a rachar a terra, o rego que se dava na goma da primeira lavra e assim a terra ficava devidamente cortada.
A terceira volta era a estravessa e eventualmente uma outra a gradear. Eram os termos, certos, que se aplicavam para a primeira lavra que se dava à terra, sobretudo às terras que se começavam a preparar para a sementeira dos cereais, segunda e terceiras voltas, ficando assim prontas para a sementeira que devia acontecer no mês de Outubro.

Dizia o “Ti Manel d’Alvino”, quando passava no caminho da Lameira de Cima, para o agora ancião da aldeia, então já andas a decruar? Não Sr. ando alinhar uns velados para plantar uns bacelos. És muito burro, se bebesses o dinheiro que vais gastar em vinho, é que tinhas juízo.
Mais à frente diz para o “Ti António Joaquim – Paleiroto”, então andas a abrir uma poça para plantares alguma macieira? Não, estou a começar um poço. Tens muito que lhe dar até cortares a veia, ele tinha um ali perto e pouca água dava. Este “Velho do Restelo”, habituado a viver com as limitações da época, permitia-se desaconselhar estes jovens e não confiava no seu espírito empreendedor, quando estavam a querer dar outro rumo às suas vidas. Um tirou um bom poço de água e o outro teve ali uma grande vinha. 
Os nomes, alcunhas, pelos quais aqui retrato estes Samarras amigos, faço-o com todo o respeito, até porque sempre me trataram bem e quando garoto foram meus companheiros de caminho, muitas vezes, para estes dois locais e assim, recorrendo a alcunhas, muitos ainda os poderemos recordar.
O inconformismo e o exemplo confiável de muitos Samarras, como estes, fizeram com que nós chegássemos onde estamos e porque não é demais redizê-lo aqui fica expresso.
A lavoura era feita com um junta de burras, uma burra e uma vaca, esta, por norma mais valente que a burra, então o lavrador deitava-lhe a meia correia, isto é, puxava o tamoeiro, peça de couro na canga onde o tamão do arado engatava, mais para o lado do animal mais forte e assim obrigá-lo a fazer mais esforço e poupar o mais fraco: “era a quota de solidariedade forçada como hoje verificamos noutras áreas”, aliás a burra ou macho já carregara no percurso até ao local de trabalho, o arado, a canga e o molho de feno e canas, para o almoço de ambos, logo era justo. Quem tinha uma junta de vacas, ou várias, faziam a lavoura com estas.
O lavrador com pulso firme agarrava a rabiça do arado, pisando-o aqui aliviando-o acolá, com os tamancos de pau, fabricados por ele com um pedaço de pau de amieiro se era habilidoso, ferrados com aro de ferro em toda a volta, para que o desgaste não fosse tão rápido e os animais também eram ferrados para melhor suportarem o pisar dos seixos e pedras das aradas e a aguilhada na outra mão para se apoiar, orientar e incentivar os animais; rego após rego, belga após belga, era tarefa extenuante, sobretudo quando andavam a amansar uma borreca ou uma vitela.
A vaca mais velha, quando fazia par com uma vitela a amansar e com a responsabilidade de deixar a arada direita, tinha de se manter firme para aguentar a impetuosidade e o incómodo insólito da sua parceira de trabalho ao sentir, pela primeira vez, o jugo no cachaço. O mesmo se passava com a burra mais velha, que por vezes tinha que amansar a borreca mais nova sua filha.

Aquando das sementeiras, ali por Outubro, logo de manhã cedo, era ver os lavradores, com as burras carregadas, de um lado o saco do cereal a lançar à terra, normalmente centeio e do outro lado da albarda o saco do adubo amoniacal ou nitrolusal, quando começou a aparecer e no meio da carga, o almoço para os animais e por vezes o garoto, se não era dia de escola. Se lavravam com uma ou mais junta de vacas, todos os utensílios, por que eram bem mais; arados e jugos, como os sacos de cereal e adubo, almoço para os animais, eram transportados no carro de bois.
Chegada a hora do almoço, o lavrador procurava almoçar rapidamente, enquanto os animais continuavam a traçar a faixa de feno ou o molho de canas que lhe colocara à frente e a enfardarem-na, para mais tarde ruminarem; ele espalhava mais uma belga de cereal e adubo sempre que fazia a tarefa sozinho, posto o que agarrava novamente na rabiça do arado.
Esta lavra era feita em regos miúdos para que a semente ficasse bem coberta e a resguardo do apetite das boieiras e cotovias, que acompanhavam o lavrador rego após rego, à procura de uma minhoca ou aude que a relha do arado desassossegasse ao esventrar um formigueiro.
Feita a sementeira, aguardava-se que o ano fosse de feição para que o cereal crescesse bem e se necessário ainda se fazia a monda das ervas daninhas, quando feita à mão, ou o aricar se era feita com o arado a sulcar o fundo do rego e que tinha o mesmo efeito, arrancar as ervas daninhas, nomeadamente o joio.
Se vinha um nevão em tempo oportuno, em vez da geada negra, dizia-se: “ano de nevão, ano de pão”, mas se ocorria em Fevereiro, era presságio de mau celeiro.

Ali por Abril o camponês-samarra descia o caminho do alto das Ferneirizes, a estrada de terra batida só aconteceria meio século mais tarde e começava a espraiar a vista por tudo quanto o rodeava; naquele ano tinha-se semeado a folha de baixo e desde o alto da Pinta, ao Caldeireiro, às costa do Cabeço da Ponte, ao Vale d’Sancho, à sua esquerda, à colina das Cascalheiras, esta á sua direita, tudo dali se avistava e prosseguia a sua ronda, passando pela Ribeira e dali pelo Vale da Armada, para subir até às colinas da Serra, vindo pela Pardinha, Valdazinha e Ferradosa; sempre a contemplar aquele ondular verde dos caules do centeio, com as espigas já em pendão e naquele exercício a que o vento os obrigava, de vai para um lado, ora vai para o outro, como se estivessem num exercício rítmico de ginástica, ganhavam firmeza para que, com a ajuda do encosto de umas nas outras, pudessem vir a suportar o peso das espigas que com o desenvolvimento do cereal deveriam ficar bem mais pesadas. O camponês que tinha descansado um pouco junto de umas da represas de água ferrada ali pela Serra, onde há muitas e onde se dessedentou; tendo interrompido momentaneamente o coaxar do macho-rã, para atrair a si a fêmea, pois era nestas represas que faziam o seu ranário; voltava a casa satisfeito com o que acabara de ver, com o resultado do seu trabalho e ao passar pela seara do compadre, não se coibiu de comentar para si, “o cara de caraje”, expressão de surpresa, tem cá bom pão.
No ano seguinte faz a ronda pela folha de cima, mas um mês mais tarde, e já com as espigas aloiradas e mais pesadas dado que o grão estava a engrossar e o cornazoilo indesejado também ajudava a pesar e com o sol mais castigador; a ondulação era mais lenta devido ao peso das espigas e o ímpeto do vento era mais fraco. Iniciou a sua ronda pelo caminho da Trigueira, não a estrada que hoje conhecemos, mas o caminho que ia da fonte da Dezimeira e saía junto do actual campo de futebol, pois não existia outro: Figueireda, Caijarotos, Fareleira, Lameira de Cima, planaltos da Terra Fria, Caramelo, Paúl, onde se sediou a casinha do diabo, semelhante à da crónica “Pedaços de Histórias de Pastores Samarras” que os protegia da bátegas de água e que é atravessado pelo carreiro dos louceiros, onde terão matado o soldado-cigano Luís Maria, referido na crónica “Da Primeira G. Guerra à Guerra do Ultramar e os Soldados Samarras”, pelo grande Carvalhal, Silveira, Lameira de Baixo e Marejedo.
Perante a quietude e grandeza do espectáculo proporcionado pelos grãos por ele lançados à terra, em que os seus olhos se deleitavam e no silêncio que o rodeava, só quebrado pelo levantar assustado de uma perdiz e do seu bando de perdigotos, ou por uma raposa que atravessa a rodeira, o Samarra-camponês saboreava um sentimento de alegria e de bem estar, pois sentia-se confortado pelo resultado do seu trabalho e dava Graças.
De Maio até às segadas os garotos, sempre que tinham tempo livre, procuravam nas searas de centeio o lenticão ou cornazoilo que era procurado por forasteiros e era vendido por um bom preço, dizendo-nos que era para remédios.


Chegava o mês de Junho, o cereal estava pronto para ser recolhido, era o tempo das segadas, das ceifas. Esta tarefa, a mais dura da actividade agrícola e a segunda deste septenário, porque feita de sol a sol e no pico do verão, era feita por homens e mulheres. De manhã cedo apresentavam-se em casa do patrão-camponês que ia segar, para a primeira de cinco refeições do dia, a parva e de seguida partiam em rancho para o local a segar. As mulheres e moças com chapéu de palha na cabeça e um lenço colorido a acrescentar-lhes as abas para melhor se protegerem do sol e os homens e rapazes com um lenço na cabeça, por baixo do chapéu de feltro, para ensopar o suor e lhes proteger a nuca; todos de foice de aço em punho e dedeiras na mão oposta, para proteger os dedos de um deslize da foice, tomavam lugar no eito já talhado com antecedência, se necessário, pelo proprietário para que iniciado o trabalho todos chegassem ao fim ao mesmo tempo. Os homens levavam três regos e as mulheres dois. Manada, após manada iam fazendo as gavelas em que cada dois segadores colocavam as suas manadas, que o manageiro, o proprietário ou quem ele indicasse, juntava fazendo os molhos que atava com o caule do cereal se este era grande e o permitia, ou com nagalhos de palha, feitos com antecedência para o efeito. Se as gavelas ficavam muito tempo expostas ao sol, podia acontecer que algum réptil as aproveitasse como refugio soalheiro, como eu presenciei, em garoto, no pomar que foi da Casa Grande, perto do pombal, quando o “Tio Jaime” ao achar que a gavela estava muito pesada, atirou-a ao chão e dali saltou um grande cobrão.
Se alguém apanhava uns regos mais difíceis, porque o cereal estava mais forte ou caído, era ajudado pelo parceiro do lado, não se deixando ficar ninguém para trás, nem que se tivesse de dar com a manada nas pernas do parceiro que seguia à frente se este se atrasava, o que acontecia com os jovens que se iniciavam nas segadas; no entanto, a ajuda solidária era ponto assumido.

Rolheiro a secar e em tempo de espera para a eira

Terminado o corte do cereal, nesta propriedade, havia que juntar os molhos, tarefa em que todos colaboravam e fazer os rolheiros, fazendo-se um rolheiro se o cereal era todo para o proprietário ou três se este foi colhido em terra de terceiros, logo de terças, para que o dono da terra escolhesse um dos três, marcando-o e assim quando chegasse a altura da acarreja o rendeiro saber qual o que não carregava. Os molhos eram arrumados com a espiga para dentro para proteger as espigas dos pássaros e de animais que entretanto fossem levados a procurar comida no restolho, nomeadamente os rebanhos e ali ficavam a secar até ao seu transporte para a eira. Quando o sol já começava a apertar, sobretudo depois do almoço, no fim do eito, um dos segadores encarregava-se de estar pronto com o cântaro de água e o púcaro, que se terá enchido numa presa ou poço ali perto, para matar a sede aos seus parceiros de jorna. Concluído o trabalho nesta propriedade partia-se para outra.
Sendo um trabalho árduo, havia que melhorar e reforçar as refeições e efectivamente assim acontecia.
A primeira era servida em casa e a segunda, o almoço, por volta das 10h00 era servida no campo da segada, bem como a terceira o jantar, pelas 13h00 e a quarta a merenda pelas 17h00.
A mesa era estendida no chão sobre umas gavelas de cereal e toalha de linho, sobre a qual se expunham os barranhos de barro ou os alguidares esmaltados, estes já mais tarde, com o caldo, entulhoso, de gravanços, ou feijão, repolho e massa de cotovelo, temperado com o sabor das carnes de porco ali cozidas e do fumeiro. Os segadores ajoelhavam em redor da mesa e munidos da única peça individual, que era a colher, serviam-se do recipiente comunitário colocado no centro da mesa; daí, desde o caldo, ao feijão branco bem cozido com ovos, ao rancho, aos milhos e ao arroz doce, serem todos consistentes, para poderem ser levados até à boca com maior certeza e para darem mais força.
O jantar era a refeição por excelência mais esmerada e mais composta; se o caldo ao almoço tinha sido de grão, agora seria de feijão com os restantes componentes, o arroz de coelho, e as batatas servidas com bons pedaços de carne de porco cozida e um leque variado de talhadas de fumeiro. A salada e as azeitonas, também estavam presentes em todas as refeições; enquanto os segadores se deliciavam, com estes manjares e procuravam ganhar forças para nova arrancada, alguém se encarregava de encher o copo de vinho ou água que estes iam esvaziando e passando ao parceiro do lado. Como foi referido em outras crónicas, era para esta altura que se guardavam as chouriças e a salgadeira escancarava a sua tampa, para bem servir os trabalhadores a torna dia, e no sentido de também os assegurar para o próximo ano, pelo bom trato que lhes era dado. Após o jantar e para esmoer um pouco a refeição em sossego, seguia-se a sesta que durava uma hora e logo que surgia a voz do manageiro todos retomavam o eito e o trabalho recomeçava.

A merenda ao meio da tarde, cerca das 17h00 em que se serviam milhos, arroz doce, pão, queijo e azeitonas.
Não é difícil depreender que, também eram dias árduos para as cozinheiras, por norma a dona da casa, ajudada por irmãs e cunhadas; enquanto umas confeccionavam refeição, após refeição, outra levava-las aos segadores, nas aguadeiras de vimes no lombo da burra, orientada pelo garoto que a segurava pelo rabeiro e à cabeça leva o caldo para que com o balanço das aguadeiras não se entornasse.

A ceia era servida já em casa e constava de caldo verde, batatas com ovos cozidos e azeitonas e por vezes ainda se seguia um bailarico, quando o tocador desembrulhava o realejo que guardava no bolso para tocar umas modinhas e assim terminava um dia árduo mas alegre, na comunidade de parceiros de trabalho, pois tinha sido um dia de colheitas, um dia de festa, o quase terminar de um ciclo de trabalho. Pouco depois recolhiam a suas casas, porque no dia seguinte outro parceiro - de - torna - dia os esperava.

Uma vez feitas as segadas, havia que recolher os cereais do campo para as eiras e a esta tarefa dava-se o nome de acarreja; para depois se iniciarem as malhas, porque dizia o povo: “quem malha em Agosto já malha com desgosto”.
Nos dias da acarreja, os que não tinham de se levantar cedo, eram acordados com a sinfonia do chiar dos carros de bois a rodarem nos seixos da calçada, ou nos pequenos barrocos, pois os lavradores começavam o dia muito cedo, de maneira que ao romper do sol já estivessem com o primeiro carro na eira, porque com muito calor os animais eram atacados pelas moscas e moscardos que os picavam nos locais por onde o suor escorria; pescoço, focinho e axilas, o que lhes causava grande sofrimento, tornando-se difícil de os controlar com um carro carregado de molhos de cereal.
Ao chegarem à eira, esperava-os a mulher Samarra com um molho de comida para os animais e a parva para a dupla, o lavrador que conduzia as vacas e o proprietário ou seu ajudante.
Começada a meda com o descarregamento do primeiro carro e comida a parva, partiam para novo carrejo. Após o almoço e no pico do calor fazia-se uma pausa e a tarefa recomeçava-se mais tarde e até ao romper da noite. Os carros de bois carregados de cereais, em pirâmide invertida; carga suportada e orientada pelos oito estadulhos, quatro de cada lado, eram verdadeiros andores, quando o lavrador era mestre a fazer a carga e tinha de vir bem equilibrada, caso contrário poderia desmoronar-se pelos tortuosos caminhos e rodeiras desniveladas e cheios de barrocos em que tinham de passar, valendo-lhe por vezes o contra-esforço feito pelo ajudante, quando o andor se inclinava muito para um dos lados, por via do percurso desnivelado.
Na eira, as medas de cereais eram arrumadas lado a lado, ou umas atrás das outras, em volta da eira para logo que possível se fazer a malha.
Havia eiras comunitárias como a do Bairro de Trás da Quintã e outras e as privadas: a Eira Domingues, a dos Carlotos, a dos Mendos, a eira do Castenheirinho da Casa Grande e a Eira Grande; a laje desta, era feita de blocos de granito trabalhados e colocados lado a lado, enquanto as outras eram de lajes monoblocos, ou não, encrostadas na terra.

A última tarefa deste ciclo que nos propusemos tratar era a malha e também ela dura e suja por causa da pragana do cereal e porque, sempre feita sobre a torreira do sol, como convinha, para que o grão melhor se separasse da espiga.
Os utensílios para esta árdua tarefa eram: o mangual, o ancinho, forcada, pá de pau, vassouras de rabos ou de giestas para coanhar, limpar, o cereal. O mangual, peça imprescindíve, é composta por 2 paus, um comprido e delgado a mangueira, com cerca de 1,5 metro e com uma argola de cabedal no seu topo e outro pau curto grosso e pesado com cerca de 0,60metro, chamado de pírtigo, que se ligava ao primeiro com correias, a meã, que era o que batia nas espigas.

Mangual

A primeira tarefa era tapar os buracos que pudessem existir entre as pedras para que o grão não se perdesse, posto o que se começava a fazer a eira.
Colocavam-se os molhos que faziam a cabeceira da eira e em cima destes os restantes molhos em forma de gavelas expostas com a espiga para cima, e assim sucessivamente, em diversas fiadas até a eira estar completa, posto o que se alinhavam um grupo de homens de um lado, os direitos e os canhotos de outro, de maneira que ao baterem com o mangual nas espigas o pudessem fazer sem interferirem uns com os outros e ao comando de um dos homens, os manguais iam e vinham, num ritmo compassado e sincronizado com mais ou menos força conforme o grito do mandante, vai a cima “imã” ou vai a baixo “aixo” até ao fim do eirado com um “alto”. Atrás, uma mulher ia virando o cereal para que fosse batido do outro lado. Malhado o cereal sacudia-se a palha e tirava-se para dar lugar a nova eirada. No fim de cada eirada era oferecida água ou vinho aos homens do mangual, para repor o líquido perdido devido ao esforço e por via da transpiração.
Para erguer o cereal, para o limpar, atirava-se para o ar e para a frente, com a pá de madeira, contra o vento e assim separar o cereal da moinha, tarefa que era completada com a ajuda das vassouras. ”Com o vento se limpa o trigo e o vício com castigo”, daí deixarem-se sempre duas aberturas em redor da eira, nunca se fechava o círculo, para que o vento a pudesse trespassar e facilitar esta tarefa.
Ao resto dos cereais esmagados, sementes daninhas, às praganas e espigas que se soltaram da palha dava-se o nome de rabeiro, que era aproveitado para rações dos animais e para as galinhas cardarem. A palha era atada e transportada para as cortes e palheiros, ou então fazia-se o palheiro no local da eira.
A tarefa da malha terminava com o ensacar do grão e a recolha em casa, onde se guardava em arcas, longe do alcance dos ratos. Não eram todos os homens Samarras que pegavam numa saca de 100kg de centeio e o carregavam do carro de bois para a arca, depois de a custo passarem pelas soleiras apertadas das portas das lojas, mas havia-os e recordo um, aqui já referido, o mesmo que, logo que lhe dava a sombra dos pinheiros da Pardinha no terreno da serra, abandonava as tarefas e regressava a casa; no entanto, não recusava pegar numa saca de 100kg de cereal e carregá-la para a arca.
“O centeio que se recolhe na eira mais tarde andará na masseira”.
O centeio após a malha, ainda na eira ou já em casa, também era recolhido pelos mordomos das festas, para pagamento de obrigações e promessas, o que também acontecia com o vinho junto dos lagares, no tempo em que as adegas cooperativas ainda não existiam e em que se fazia vinho para gastos de casa e não só.
Sendo um trabalho árduo também as refeições eram reforçadas e melhoradas; o garrafão do vinho, bem como a bilha de barro com água estavam sempre presentes. Tal como os Septenários do Apocalipse, também poderíamos dizer, que o ciclo do pão era um Septenário: Sementeira, Segada, Acarreja, Malha, aqui tratados e o Moinho, a Masseira e o Forno, até o pão ir à mesa, em que o pão é a plenitude do septenário. Eram um conjunto de tarefas, em que cada uma tinha a sua especificidade e que se complementavam.
Porventura, alguns, muitos Samarras ao lerem esta, já terão dificuldade em se sentirem envolvidos em alguns dos cenários aqui relatados, mas a memória descritiva é o que nos mostrava, antes das vinhas e olivais e o abandono das terras que hoje podemos contemplar.
Também nesta, fica um agradecimento aos Samarras que me ajudaram a recordar alguns termos desta.

Novembro 2013 (32)
Apaulos


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  1. Desta vez, não concordo com o Apaulos, ele não desarrumou gavetas, ele desarrumou os gavetões. Quando pensamos que os temas já se esgotaram, eis que nos brinda com mais um relato, que nos transporta a momentos inesqueciveis das vivências das gentes Samarras. Bem haja.

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  2. Com que então, apanhavam e vendiam droga? SLD. Será que não sabiam mesmo? Humm!...
    Àparte a droga, parabéns.

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    1. O centeio deturpa os sentidos (lsd). Um belo relato que já não é do meu tempo. Parabéns por mais esta partilha.

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  3. sempre houve muita droga na nossa querida aldeia.

    O cara de caraje. lindo!

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  4. parabens A.paulos,uma vez mais na minha imaginação voltei a ser criança,sugiro aqui(posso?)que no mesmo genero faças uma cronica a certas figuras caricatas samarras desse tempo...abraço!

    (soldier)

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  5. Como não acedo ao FacebooK ou Twitter, quero aproveitar para agradecer a quem, com agrado, comenta as minhas crónicas naqueles sites sociais e esta é a razão pela qual não retribuo, dado que desconheço os respectivos comentários.
    Obrigado.

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  6. Muito bom, APaulos! Grande trabalho de pesquisa,compilação e descrição das nossas referências campestres!
    Obrigado
    Abraço
    João

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  7. Gostei e aqui fica a sugestão para pensarem em publicar um livro com as tuas crónicas.
    Abraço
    A.G.

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  8. Gostaria de conhecer "a graça" do anónimo que assina por (soldier), mas isso era apenas uma vontade minha, porque já tenho lido comentários interessantes com este pseudónimo, mas se ele assina como anónimo, terá as suas razões. Seria inreressante, mas com um grau de execução da minha parte muito elevado e improvável, dado que requereria muita, muita sensibilidade para não ferir a susceptibilidade dos seus familiares e eventuais troca de impressões com estes. Talvez alguem residente na aldeia possa agarrar o tema. Permita-me, em vez de figuras caricatas, eu e diria " figuras típicas" mais ou menos conceituadas e todas respeitadas.
    Obrigado

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    1. Todos perguntam quem é o Soldier...
      Personagem enigmática esse Soldier..

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    2. soldier...sou apenas mais um anónimo,samarra de nascimento,nao residente.
      gosto de visitar o blog da minha terra...mas não gosto de visitar a minha terra,sempre me senti um samarra "enjeitado"...talvez por causa de todas as privações de criança,acho que a minha terra nunca me reconheceu como filho,...algo psicológico


















      soldier...sou apenas mais um anónimo! samarra de nascimento,não residente,gosto de visitar o blog da minha terra,mas nãogosto de visitar a minha terra,desde pequeno sempre me senti um samarra "enjeitado"...psicológico!

      (soldier)

      .

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  9. Que saudade das paisagens dos rolheiros que nunca mais voltam e recordo-me do cornazoilo que ainda vendi aos que o procuravam e nos diziam que era para as farmácias.
    Vou-me manter como anónimo, para que a bófia não me venha chatear, retroactivamente, por vender matéria prima para a droga. A.Paulos, podemos esperar que nos descrevas as três partes do septenário referidas, mas não descritas?
    Bem -hajas por me levares aos tempos da minha meninice.
    Podemos esperar que

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  10. O Soldier deixa-nos aqui um exemplo, dos que, apesar disto ou daquilo não vão à aldeia, mas não esquecem nem renegam as suas origens Samarras e sempre que têm oportunidade espreitam o que ali se passa.
    Para o Soldier um abraço.

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  11. Obrigado Apaulos por mais esta maravilhosa crónica. Foi muito bom recordar alguns termos que eram usados no desempenho destas tarefas, sobretudo porque alguns já quase os tinha esquecido. Também quero aqui deixar o meu abraço de solidariedade para o nosso conterrâneo Soldier. Se era tão pequeno (criança) como sugere não pode ter feito grande mal e nós só nos devemos envergonhar do mal que fazemos conscientemente e nunca das agruras que a vida nos impos.

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    1. A.carapito.um abraço!obrigado por a solidariedade...foi no chevi do A.carapito que eu fui para Pinhel fazer o meu exame da quarta,e quando na subida dos tanques tivemos que sair todos e ajudar a empurrar o Chevrolet,porque patinava ao subir!...ainda me lembro nesse dia que deveria ser de festa o meu almoço foram 2 ovos cozidos com pao!...rancho melhorado...agruras esquecidas esse dia!

      (soldier)

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    2. sou da aldeia, adoro a aldeia, é a minha terra, tive 8 anos sem por os pés lá por causa de gente que não interessa.
      Mas não deixa de ser a minha terra...

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  12. Parabéns António Paulos.Suas crônicas já podem ser compiladas num belo livro,sobre as "gentes samarras".Se os que estão fora ,testemunharem também com suas experiências,teremos um mosaico maravilhoso dos samarras.

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  13. Soldier, embora na altura não tivesse muita graça ter que empurrar o chev. agora passados tantos anos até tem alguma . Como diz o ditádo recordar é viver e foram todos esses episódios por nós vividos que moldaram a nossa maneira de ser e o nosso carater SAMARRA do qual tenho muito orgulho. Saudações e votos de feliz Natal e Ano Novo próspero para tados os samarras.

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  14. "O exemplo confiável de muitos Samarras" ; a herança do exemplo, da dignidade que nos legaram, que nem os gatunos nos podem roubar.
    Gostei! Obrigado.

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  15. O padreco enrrabador de crianças foi apanhado
    como é k 1 b ordamerdas de rapazito e um abre latas e um outro
    gobernam uma aldeia
    meu deus
    é uma atentado À MORAL dos bons costumes.
    i de pro zaralho samarras concoedo com soldier.

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  16. Ao anónimo de 29/11 - 13:47, oportunamente voltaremos ao assunto, nem que seja para justificar o septenário, descrevendo as três partes que faltam.
    Um Santo Natal para todos e aproveitem para comer as couves já castigadas pela geada que são únicas e se embrulhadas com o bacalhau e regadas com o azeite samarra ainda escorregam melhor.

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  17. Se recordar é viver, hoje ao serão vivi uns bons anos dos tempos de menino e de jovem, recordando termos e locais que já estvam a ficar esquecidos e por via desta, também me "esqueci" onde tinha de ir, mas não faz mal vou amanhã. Obrigado

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  18. Já tinha lido e hoje reli-a e mais uma vez encontrei aqui uma descrição que me transportou aos meus tempos de garoto e que recordei com emoção. Foram tempos muitos duros, ma s a nossa garotice e juventude foi feita e vivida no meio de todos estes sacrifícios é bom recordar. Obrigado

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  19. Que jóia de de documento,como muitos outros, pela descrição pormenorizada e fiel de como as coisas se passavam é uma autentica relíquia, se ainda não leu não perca.Obrigada ao seu autor.

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  20. Grande crónica, das terras samarras, quem desta juventude acredita que isto era assim; que era assim que os seus antepassados, amanhavam as terras e criavam os cereais que iriam ser transformados na farinha que daria lugar ao ao pão que se iria por na mesa para matar a fome.Gosto de ler as suas crónicas, mas para a rapaziada do nosso tempo, esta reflecte os tempos que nós vivemos e que aqui também relata. Em boa ora meteu ombros a esta nobre tarefa, pois tudo isto se deveria perder, pois, hoje já há quem se questione se deveras era assim. o A.Paulos e o blog tornaram estas memórias, memórias vivas. Bem-haja a todos os que não deixam morrer as nossas memórias.

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  21. Bem-haja a quem se lembrou de chamara esta crónica para o expositor, pois é uma das melhores do apaulos, das melhores no sentido da sua descrição e que me faz reviver os meus tempos de garoto .bem-hajam.

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  22. Boas, Sr. APaulos, sei que não desistiu de escrever e que também não esgotou os temas Samarras, até porque tenho lido outras que vai fazendo e que tem enviado a alguns amigos, nos quais me tem incluído. A pergunta é:para quando outras que nos façam reviver e reavivar o sentido e o cheiro do humus das terras que nos viram nascer e crescer!!! Esta é, para mim, pela descrição exaustiva, pormenorizada e fiel, um das suas melhores prosas. Cabe também um agradecimento, aos jovens que criaram e controlam o blog, sem o qual, tudo ficaria no esquecimento. Bem-hajam e continuem.

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  23. Saia outra ao estilo desta, ainda tem fôlego para isso? Bem-haja

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