Os rebanhos retouçavam nédios pelos campos e os pastores, ora de passo apressado, ora pára aqui, ora pára acolá, sendo que o ritmo era marcado pela pastagem e pela foice bocal das cabras e ovelhas em que, aquelas, por norma, seguiam à frente e as outras, porque são mais tardas seguiam atrás e no fim, as mães com os chibitos e cordeiros, que com os seus balidos, qual lamento protestante, que com dificuldade as procuravam acompanhar e em quem derriçavam a teta, sempre que estas paravam para abocanharem um bocado de erva ou pasto e eram sempre alvo de atenção do pastor, metido consigo próprio desde antes do nascer do sol até muito depois do ocaso, mas com os olhos e ouvidos bem alerta para proteger o rebanho.



A monotonia da paisagem era quebrada pelo som dos chocalhos nos cachaços dos bodes e carneiros e nas chibas e ovelhas mais rebeldes, para que o pastor melhor as pudesse controlar e também serviam para que; após um exercício de escuta cuidada, a mãe, a mulher ou irmã, localizassem onde o rebanho se encontrava, para entregarem o jantar; o caldo ou as batatas compostas com grelos, ao filho, marido ou irmão. Esta monotonia também era quebrada pelos: mé-mé-més prolongados e lamentosos das ovelhas a quem, recentemente, tinham vendido os filhos.



Quando estas cabras “chibas” e ovelhas numa atitude de diabretice, ou porque se alcandoravam num muro ou barroco, para roubarem umas folhas de couve proibidas, ou os ramos tenros de uma planta mal protegida ou de qualquer saboroso arbusto; então, não era raro caírem e por vezes partirem uma perna ou mão, ou quando os carneiros/bodes se aleijavam numa luta sem tréguas, para ganharem os favores das companheiras em cio, ou mesmo quando o cão rafeiro as perseguia, para as encaminhar e se estas se mostravam renitentes, ele sabia usar os seus caninos numa das pernas, ou mesmo quando o pastor as procurava controlar atirando-lhe pedras, também podia acontecer o acidente. O cão pastor da serra guardava as suas energias para tarefas mais nobres, vigiar o rebanho de inimigos exteriores e dar atenção especial aos anhos e chibitos, auxiliando o pastor.



A longo de centenas de anos, os ossos e tendões de braços e pernas, bem como as costelas partidas e amoladas, os pulsos ou pés partidos ou torcidos, foram tratados por quem não conhecia os seus nomes, mas sabiam apalpá-los e tratá-los e existiam alguns: por estas Terras do Demo de Aquilino, que também podiam ser do Adolfo Rocha (Miguel Torga) ou de Ferreira de Castro em Terra Fria. Nestas localidades isoladas, entregues a si próprias, que tinham de se bastar e em que eles, observaram e realçaram os homens/trabalhadores, que foram capazes de impor a sua necessidade à natureza agreste e adversa das condições em que viviam e que no dizer de Torga “ faziam do homem único ser e digno de adoração” e assim era na Aldeia Samarra. 
Os nossos ortopedistas, fisiatras e fisioterapeutas, conhecidos por “Endireitas”, acumulando aqui todas estas especialidades; os nossos “doutores endireitas”, alguns dos quais nem ler sabiam e cujos saberes foram adquiridos e acumulados, junto dos rebanhos de ovinos e caprinos que pastoreavam e com quem compartilhavam grande parte dos seus dias e noites, o que os levava a que um e outras se conhecessem, conhecessem os seus cheiros, e partilhassem os seus aconchegos e afetos; estes pastores, faziam verdadeiros prodígios na execução destas tarefas, a que hoje dão nomes tão pomposos. 

Era nestas terras, onde o arado dos anos, lavraram nos rostos de homens e mulheres, profundos socalcos e onde as crianças de bibes de chita e rabo ao leu, se entretinham nas ruas brincando umas com as outras, até recolherem aos humildes casebres de pedra sobre pedra, quando os pais regressavam do campo; que os “Endireitas Samarras”, puxavam dos seus saberes e numa simbiose de ortopedista/fisiatra e terapeuta, procediam à primeira avaliação do paciente e se as condições locais e os instrumentos/apetrechos que carregavam no bornal o permitiam, o trabalho era feito ali mesmo, caso contrário carregavam-na aos ombros até à clínica “o curral”, onde eram tratadas com todo o esmero e ali ficavam a repousar com rancho melhorado, até o fisiatra achar por bem dar-lhe alta, para passarem a acompanhar o rebanho, muitas vezes ainda com a mão ou perna com talas. 
Era neste “Campus”, que era uma escola - prática, de conhecimentos e actualização permanente, que os “Endireitas Samarras”, obtinham os seus saberes e que, quando necessário, os aplicavam nos seus conterrâneos.



Eles desconheciam que o corpo humano adulto tem 206 ossos e que 80% são compactos e 20% são esponjosos e que a “espinha” coluna vertebral tem 33 vértebras, mas sabiam que a função do esqueleto é servir de armação estrutural para proteger os órgãos vitais e músculos que fazem mover o corpo; também sabiam apalpar os tendões e localizar a rotura de ligamentos. Não sabiam o que era a epífise, o endósteo, a díafise ou o periósteo; mas sabiam que o osso mais longo do corpo humano é o fémur e que a sétima costela fixa, era a maior, porque delas tratavam com frequência. Nunca viram um esqueleto humano, onde pudessem ter contado os 26 ossos do pé, unidos por vários ligamentos ou os 27 do pulso, mão e dedos, 8 dos quais compõem o pulso. Sabiam que o peso do corpo era suportado pelo osso da coxa (fémur) e pelo osso da canela (tíbia) e o perónio está envolvido na fixação dos músculos do pé, mas sabiam tratar tudo. 

Hoje quando fazemos fisioterapia, se temos curiosidade e interesse em saber o que nos provoca o “achaque”, se o terapeuta é competente e paciente em explicar, explica-nos e nós entendemos, mas raramente ficamos a saber aqueles nomes que nos provocam o desconforto. Os Endireitas, endireitavam/concertavam e diziam eles que se tivessem andado numa “Escola”, não saberiam fazer melhor do que fazem e digo eu; pois, é que muitos deles, nem ler sabiam. Possivelmente as técnicas de: fototerapia, vibroterapia, hidroterapia, electroterapia, cinesioterapia, etc., com as suas várias designações, não estariam ainda disponíveis, mas, se lhe falassem nelas, a sua resposta seria a mesma da anterior, … não saberíamos fazer melhor. Uma vez que a medicina convencional, naqueles tempos, não existia ou era escassa por estas paragens, os Samarras olhavam para estes “Endireitas” com estima e respeito e por vezes, senão os poucos médicos, mas se os seus familiares também recorressem a eles, quando os procuravam repreender por essa atitude, bastava que se quedassem um pouco, para não recriminarem a consulta a estes, em vista aos resultados que eram visíveis.



Não eram doutores, não tinham aqueles nomes pomposos e difíceis de dizer dos especialistas de hoje: fisiatras, ortopedistas, quiriopatas, fisioterapeutas, etc., cujas mãos delicadas, por vezes, fazem verdadeiras maravilhas, mais do que aqueles instrumentos modernos que bem sabem manejar e com tempos rigorosamente contados pelo apito sonoro, mas que, a minha experiência pessoal, não troca por uma massagem de mãos prodigiosas destes profissionais e aqui os nossos “Endireitas”, não receavam pedir meças, com os doutores de antanho: nos tactos em que os seus dedos detectavam o problema e nas massagens que as suas mãos calejadas davam e concertavam e que em vez de cremes seleccionados ou óleos a cheirarem a jasmim, aplicavam o azeite virgem das oliveiras samarras para que as mãos deslizassem melhor. 

Tratar de um braço, pé, ou perna torcidos ou partidos, o que poderia acontecer, na actividade campesina do dia a dia, ou quando apanhados pelo coice de um macho ou burro, ou quando um caçador de nariz no ar para acertar numa perdiz que se levantara a uns metros de distância, colocava mal a bota, no meio do mato ou erva alta, num pedregulho ou buraco, era um cenário para o acidente, e não era raro acontecer e por vezes com consequências mais trágicas, como recentemente, no início deste século, em que um caçador, não Samarra, que caçava num terreno cheio de fieitos “figueitos”, ao cimo da Veia Cova perto das Minas de Urânio, caiu num dos seus poços cisterna e devido à sua estrutura de construção não conseguiu sair do mesmo, sendo mais tarde retirado pelos bombeiros já sem vida, sendo que a sua localização só foi possível devido ao seu fiel amigo que não abandonou o local. 
Para aqueles acidentes, não para este, os “Endireita Samarra”, eram habilitados.

“Ti António Dias.” O “Endireita Samarra “ por excelência, que muitos ainda recordarão


Quando a ambulância, “o carro de bois”, sempre presente junto da obra para carregar as pedras, o barro e outros materiais, quer fosse para construir uma casa, um cabanal ou emparedar um poço, aparecia com o Samarra acidentado em cima, pois ainda nem carroças havia, que seriam mais rápidas, embora elas já existissem no tempo dos Faraós no longínquo Egito, como se podem observar no “Museu Núbio” em Aswan e se o “Endireita” não estivesse em casa, ia-se chamar ao campo e se o problema era grave, largava o que andava a fazer, para vir socorrer o conterrâneo acidentado ou o forasteiro que viera de fora à procura dos seus serviços.



Puxar a “espinhela” caída ou endireitá-la, acontecia quando o ”Endireita” mandava levantar os braços do queixoso, deitado ou sentado, nas tábuas irregulares do soalho da sala e ao tentar juntar os dois dedos polegares, os braços deveriam ficar do mesmo tamanho e se um estivesse mais curto era sinal de que tinha a “espinhela” caída e então esta era puxada. Por vezes, nas costelas e região lombar, também lhes aplicavam ventosas com um copo de vidro, técnica milenar, a que hoje chamam de “ventosaterapia”. 

Poderiam saber que nas articulações havia um líquido para fazer a lubrificação, de maneira a que os ossos não roçassem uns nos outros, mas que dessem a esse o nome de líquido sinovial era algo que não sabiam nem os chateava. 

Homenageamos os “Endireitas Samarras”, pelos relevantes serviços que prestaram aos seus conterrâneos, nomeadamente os que ainda conhecemos: Francisco Dias (Ti Coxo), ainda nascido no século XlX, seu filho o Ti António Dias, que nasceu em 1905 e faleceu em 1989, um dos mais conhecidos e se a função era a mesma, o empenho e intensidade, o saber se quiserem, era diferente e daí os efeitos do trabalho de um e outros e o Ti António Dias tinha aceitação e resultados diferentes. Recordamos outros: Alfeu Fernandes, Augusto Fernandes (Ti Augusto Fechisco). O saber poderia ser e era diferente, mas todos eram prestáveis e procuravam fazer o seu melhor. 

A falta de técnicos e meios na área de saúde, por estas paragens, à data, era gritante; estas gentes da “Terra Fria”, eram esquecidas e tinham de se desenrascarem e daí também a consideração como o “Torga” se refere a eles. 

Os barbeiros praticavam, alguns actos de técnicas de saúde, diríamos hoje, eles davam injecções, vacinas, também arrancavam um dente se necessário e arrancavam unhas encravadas. 

As parteiras encartadas, pela prática dos serviços naqueles transes das mulheres, chegavam às Maternidades Samarras, a casa de cada parturiente, chamadas pelos maridos, quer fosse dia quer fosse de noite e prontamente respondiam ao chamamento e logo mandavam aquecer umas panelas de água, que lhe seria de muita utilidade e os partos eram muitos, já o referimos várias vezes que em 1960 éramos 850 Samarras residentes, hoje cerca de 140 e estas também eram mulheres Samarras e era comum ouvir-se dizer que fulana de tal pariu um garoto se a parturiente era pobre, mas se esta era rica, a D. Sicrana teve um menino. 

As habilidades samarras, quando nas necessidades, não se ficavam por aqui; certo dia o marido diz para a mulher: aquela galinha vai morrer!... 
Porquê? Porque estava a comer trigo roxo dos pardais, hoje matar um pardal dá uma multa significativa; agarra-a e trá-la cá, enquanto ela afiava a faca da cozinha, da marca “Verdugal” e a passava pela labareda da lareira e com a ajuda do marido, abriu o papo da galinha, esvaziou-o do trigo roxo, lavou-o e coseu-o. Uns anos depois esta galinha acabou na boca de uma raposa que assaltou o galinheiro. Esta inimaginável mas destemida cirurgiã Samarra, foi a minha Mãe que Deus tem. 

Hoje, se os Samarras precisarem de um “Endireita”, já não o encontram na aldeia e para recorrerem a um médico da especialidade ou técnico terapeuta, tem de percorrer dezenas de quilómetros e com custos elevados. 

O ”Campus Universitário”, leia-se, os “Campos de Pastagens dos Rebanhos em terras samarras”, foram a “Escola” destes “Endireitas Samarras”, que, com justiça, aqui recordamos e honramos, com admiração e estima. Também estes episódios fazem parte da nossa história e identidade Samarra, por isso e para que não se percam, aqui os trouxemos.


Março 2015 ( 48) 
Apaulos




7 comments Blogger 7 Facebook

  1. Que ternura as quatro primeiras fotos. Aqui estão mais umas vivências das vidas Samarras. Parabéns por nos ajudarem a não esquecermos como era. Ainda conheci o Ti António Dias e quero testemunhar que ajudou muitos Samarras nas artes de "Endireita" e que estava sempre pronto para ajudar os seus conterrâneos.

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  2. Os Samarras sempre se souberam bastar, quando não podiam contar com terceiros. Parabéns

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  3. Parabéns Apaulos por mais esta deliciosa crónica de homenagem aos samarras citados "Endireitas" que eu tive a honra de conhecer. Se não fosse a tua crónica quase me esquecia do "Ti Coxo". Parabéns tambem pela tua contribuição para que estes nossos conterrâneos continuem na nossa memória.

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  4. O pastor movia-se para acompanhar os anseios do seu rebanho, as autoridades locais instalaram-se e não vão ao encontro dos anseios dos seus concidadãos, porque não as ouvem, quanto mais escutarem-nas.Parabéns pela crónica.

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  5. O nome do "Endireita Samarra", que aparece como "Augusto Fernandes" - o seu apelido é "Pedro"; logo deve ler-se "Augusto Pedro". As minhas desculpas aos seus filhos Sofia e Pedro Fernandes.
    Saudações Pascais para todos os Samarras.
    Apaulos
    Apaulos

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  6. Correcção ao comentário anterior: MARIA e não Sofia.

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  7. Uma ternura de prosa e homenagem, aos doutores ortopedistas samarras. Assim já não se perdem estas habilidades e práticas ancestrais. Parabéns.

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