As ruas da minha aldeia já têm B.I. e são:
Rua Direita, a que corre em toda a extensão longitudinal da aldeia, Rua do Forno, onde se localiza a ASCDSE e que liga o Largo José Soeiro à R. Direita, a Rua de Santo André, que parte da Rua Direita e termina na Travessa da Cancela, onde também têm o seu fim a Rua do Meio que partiu da Rua Direita, ali à Praça e a Rua do Outeiro que tem início no fim da Rua da Cascata, a qual começou no Largo Daniel L Dias. As Travessas são cinco: a da Cancela, Cerdeirinhas, da Fonte, Outeiro e a Paroquial e até temos uma avenida, a que liga o fim da Rua Direita ao Santuário das Sra. das Fontes e de seu nome exactamente, Av. Senhora das Fontes. Dois são os bairros: Bairro dos Caçapões, cujo nome original era “Alto dos Cagapões” do qual foi espoliado, quando o deviam ter mantido, até porque agora ainda se justificaria mais, pois tem ali no sopé da pequena colina, as fossas cépticas do saneamento básico, com o qual os nossos antepassados dificilmente sonharam, mas quais profetas visionários, já lhe davam o nome adequado “de Alto dos Cagapões” e o da Quintã, este decerto um dos lugares mais vetustos da aldeia, enquanto aquele de construção habitacional recente; um beco, o Beco dos Agostinhos e o Quelho do Ti Zé Bolinhas; mas quanto a becos e quelhos, alguns mais podiam ser baptizados.




Temos ainda, mas sem B.I., a Quelha das Taliscas, que se inicia na savana da margem direita do Ribeiro das Taliscas e termina na Rua da Cascata; não deixem cair este nome, ponham lá uma placa, pois foi um ponto importante de passagem da margem esquerda para a margem direita e vice-versa, do Ribeiro das Taliscas, cuja travessia se fazia, na ausência de uma ponte, fazendo equilíbrio nas poldras e barrocos; sobretudo para os habitantes do Outeiro, que se dirigiam para Sudeste da Quintã, ou Fundo do Povo, encurtando assim o caminho e ainda um sítio, onde muitos iam aliviar a tripa em cima das lajes, que as águas da chuva limpariam e também local de alguns despejos, esperando que as enchentes de Inverno apagassem os atentados criminosos ao meio ambiente, como hoje se diz.
Ora, com este guia labiríntico das ruas da Aldeia Samarra, já ninguém, por certo, se considerará perdido e se ligarem o GPS, no Inverno, também os poderá levar a recantos pitorescos da aldeia, como as “Taliscas Falls”, às “correntes das águas roxas do Ribeiro das Cerdeirinhas”, como se pode constatar na crónica da “Bacia Hidrográfica dos Ribeiros Samarras”, encantar-se no ”Ranário da Cachaça” ali pelo pôr do sol, pisar os entulhos que ocultam a “Villa Romana”, para poder dizer, já lá estive, mas não se vê nada!... Até quando?..A escadaria imponente que ligava a “Casa Fidalga” aos seus pomares e visitar e admirar as” três Ermidas Samarras” de onde se podem deslumbrar com as vistas da aldeia, sobretudo da “Ermida de Santa Bárbara”, da qual parece que só nos lembramos nos dias do ribombar dos trovões que precedem os relâmpagos. Segundo a lenda o seu pai Dióscoro, após a ter degolado, foi fulminado por um raio. É a padroeira dos mineiros de entre outras profissões.

Ermida de Santa Barbara


Santa Bárbara bendita,
Que no céu está escrita,
Com papel e água benta,
Livrai-nos desta tormenta.
Esta era a prece que ouvíamos às nossas mães, muitas vezes connosco ao colo, quando regressávamos dos campos debaixo de uma grande trovoada. O seu recinto envolvente não mereceria uma atenção mais cuidada?..

Então e “os Tapetes”?.. 
A procissão dá a volta pequena ou a volta grande?..
Vejamos: saindo da igreja e ao subirmos a Rua Direita até à Rua do Forno, logo ali à esquerda e percorrendo-a, até às escada de Santo André que subimos e chegados à dita Rua de Santo André, que percorremos até ao fim e virando à esquerda, entramos na Rua do Meio que desceremos, caindo na Rua Direita e volvendo à esquerda até a igreja, então concluímos a chamada volta pequena; mas, se após percorrermos a Rua direita no sentido ascendente até à Rua de Santo André, na qual entramos, percorrendo-a toda e descermos a Rua do Outeiro e entrarmos na Rua da Cascata até ao Largo Daniel L. Dias e deste passarmos para a Rua Direita e subirmos até à Igreja, então a procissão fez a volta grande, que se faz, nomeadamente, na Festa de Santa Eufêmia.
Maior que esta, só se a volta entrasse no Bairro da Quintã e descesse ao Bairro dos Caçapões até ao início da Rua Direita e a subisse até ao largo da igreja; mas a volta grande mantêm-se tal como os nossos antepassados a delimitaram, no tempo em que a ponte do Outeiro, ainda não aguentavam com o peso dos andores dos santos, com as responsabilidades que os seus devotos colocavam sobre os seus ombros, sobretudo nos da Rainha da Festa e de todos os seus devotos, pelo que a actual também nunca foi testada. “A procissão não cansa o santo, mas cansa o devoto”.
As artérias com nomes de samarras: o Largo Daniel L. Dias é uma justa homenagem ao nosso Herói da Guerra do Ultramar e o Largo José Soeiro, recorda um dos primeiros samarras emigrantes para o Brasil nas décadas de 40/50 do século XX.
Finalmente chegámos aos tapetes matizados, que já não se estenderam nestas ruas com B. I. oficial, pelo que também não me reporto aos tapetes das folhas de hera, ripadas nos muros dos caminhos na zona da Fonte do Concelho, ou do Soito, nem das pétalas de flores e rosas cultivadas nos quintais com que hoje, nas festas, ornamentamos e alindamos as ruas das voltas pequena e grande da aldeia.

Tapete matizado e ainda não pisado, que esconde os componentes mais consistentes.


As recordações destes tapetes, decerto que já terão sido arrumadas no sótão da memória de muitos, cujas fechaduras e chaves, corroídas pela ferrugem, já dificilmente funcionariam, pelo que vamos espreitar pelas frestas ressequidas das portas que o tempo abriu nestas e através das teias de aranha e casulos brancos das traças e descrevermos o que o janelo da memória visual nos permite espreitar. Todas as ruas foram atapetadas, não necessariamente nas datas festivas, mas, sobretudo nos meses de chuva de Outono à Primavera, excepto as de maior inclinação, que eram as mesmas de hoje, a do Meio e Outeiro e a Rua Direita por ser quem era e é; a porta de entrada e saída dos forasteiros que tinham necessidade de atravessar a aldeia e porque foi a primeira a ser revestida, não com paralelepípedos trabalhados, mas com matéria-prima local, os seixos multifacetados, ali pela década 1930, conforme relato da crónica “Trasantontem” de 2.6.2012.
Os tapetes só não eram contínuos, porque as lajes davam a cara aqui e ali e não permitiam que a água e lamas ali se instalassem, logo eles só eram estendidos nos sítios onde a água e lama se quedavam e era nestes troços dos caminhos que se podiam pisar e convenhamos que só aqui é que eram necessários.
As ruas da aldeia eram de terra, lajes e barrocos, mais ou menos mutilados, sim, porque a Aldeia que se reuniu à volta da “Casa Fidalga”, está toda ela implantada sobre maciços de lajes graníticas, guardando os bons terrenos para as hortas, como se pôde constatar no fim das décadas do século passado, quando esventraram as ruas para o saneamento básico e o podem ainda testemunhar os pedaços de barrocos que espreitam a cada esquina ou debaixo das paredes mestras das casas graníticas, as não rebocadas por fora, bem como a foto na base da torre sineira, onde o grupo dos finalistas da 4ª classe perpetuou o seu dia de exame; vide crónica “ Os Garotos Samarras e os Miúdos de Hoje”, de 21.06.2012. Foi nessas décadas de modernização, que os actuais paralelepípedos e mantas de retalho de alcatrão esconderam os cenários que vamos descrever.
Os caminhos, carreiros, quelhos e becos, sim porque os becos e quelhos também tinham direito a tapetes, tal como hoje tiveram aos paralelepípedos; muitas vezes no Inverno e Primavera, mudavam de nome para veredas, quando as silvas, ervas altas e as ortigas apertavam o seu perímetro. Ah, as terríveis ortigas que os perus apreciavam quando se passeavam dois a dois, qual patrulha de GNR, ao tempo, pelos caminhos ou em grupo com a família e que os garotos desafiavam com assobios e glou- glou-glous, a que o chefe do clã respondia, esticando o pescoço e fazendo leque com o rabo qual pavão, exemplificando como se cantava o glu glu glu, mal imitado pelos garotos e não deixando dúvidas às suas parceiras peruas que o verdadeiro peru estava ali e que o imitador era um farsante.

O peru passeando-se na rua. 


Agora sim os tapetes, que ao contrário dos de hoje, eram feitos para serem pisados e repisados e em vez de hera ou pétalas de flores, a sua consistência era feita com: juncos, palhas, palhiços, figueitos, carumas, as agulhas das giestas, sendo os toros aproveitados para a lareira, folhados dos carvalhos, castanheiros e figueiras, camisas e carolos de milho; tudo o que se degradasse rapidamente servia para atapetar as ruas, tapando as poças de água e as lamas, permitindo, assim, passar com os sapatos/tamancos menos sujos e mais ou menos secos por esses caminhos, carreiros e becos e com o tanto de serem pisados, por pessoas e animais, acabavam trilhados e curtidos pelo gelo, neve e lamas e serviam para estrumar as terras agrícolas.

Esta esquina de um telhado samarra, 1968, faz-nos sonhar com os nevões que todos os anos no visitavam e que nos obrigavam a levar umas cavacas para a escola, para ajudar a aquecer a sala.


Também a urina que se escapava por meio dos buracos das paredes de pedra sobre pedra das cortes e cortelhos, ajudava com a sua acidez a curtir os tapetes, quando os porcos esvaziavam as bexigas o que era constante, bem como os coelhos e ainda as vacas, quando à noite regressavam do trabalho e enchiam o bandulho no chafariz centenário, o único que existia e quando a esvaziavam era logo aos cântaros; daí a cigana Luísa, a mulher do cigano - soldado da 1ª G. Guerra, Luís Maria, samarra por adopção, sempre que pedia esmola com o seu púcaro de barro debaixo do braço dizia: “dê-me um pouquinho de azeite, nem que seja só tanto quanto mija uma vaca”.
Era por causa destas escurrências que, por vezes, os tapetes se estendiam naqueles locais e eventualmente também para evitarem alguma coima se o cavalo da GNR pisasse aquelas águas.
Alguns destes tapetes antes de serem emoreirados, ainda eram caldeados com os estrumes das cortes dos animais, sobretudo em quintãs privadas, melhorando um das suas finalidades, agora, de estrume orgânico e assim apressavam o seu curtimento até serem levados para as terras a estrumar, pois os adubos químicos das fábricas da CUF ainda não se vendiam nestes recantos da Beira Interior.

Porque o tempo não espera, as folhas das árvores já castigadas, uma após outra vão caindo e vão-se amontoando para ajudarem a tapar os buracos nos tapetes matizando-os.


Ao serem pisados, aqueles moles e frágeis caules de palha e outros, que após umas noites de intensa geada os transformava em caniços consistentes, acontecendo o mesmo ao folhelho das folhas das árvores que o vento oportunista despiu, já quando fragilizadas, após terem sido castigadas e chamuscadas pelos gelos e chuvas do fim de Outono e que permitiam completar o atapetar e o colorir destes tapetes e que se tornavam num vidrado escorregadio e de certa perigosidade e só voltavam a ganhar a forma primitiva, se a chuva, em abundância, lhes caísse em cima ou se fossem aquecidos pelo sol, que se passeava fraco e baixo, não chegando a todos os recantos, caso estivessem à sombra de qualquer parede, ou de uma esquina de qualquer habitação ou cabanal.
Eram estes tapetes, com dupla finalidade, que se transformavam em estrumeiras no domínio público, a que aqui chamámos pomposamente de tapetes.
Muitas coisas e hábitos se alteraram, outras perderam-se sem retorno de poderem serem recordadas, mas enquanto a nossa memória no-lo permitir, talvez possamos continuar nesta trilha e aparecermos com mais algumas crónicas samarras, para que o passado da Aldeia Samarra se torne mais presente, sempre que o quisermos.


Março 2014 (38) 
Apaulos

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  1. As Taliscas. Foi dos primeiros nomes que associei à aldeia, Taliscas e Cagapões. Adoro! Há uns anos atrás era uma aventura andar nas ruas, um perú, um boi ou um cão danado poderiam atacar-nos a qualquer momento. Isto a propósito do perú da "Guarda-Rios" no largo da Rua do Meio. Tinha um medo dele, quando ele começava a fazer aquele barulho estranho e a correr em direcção a nós. Já não há perús na aldeia. Era quilhado aquele tempo.

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  2. Também estou de acordo com as Taliscas, é um local a preservar.

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  3. grande texto de história pura. Parabéns.

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  4. Excelente relato descritivo, gosto particularmente da visão dos cagapões e 800 pessoas a estrumarem a aldeia aromatizando a mesma. Belos tempos. parabéns A.Paulos, continua.

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  5. o meu testemunho....like

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  6. olha que já não me lembro de pisar uma bosta, tipo merda mesmo, humana. Não me interpretem mal, mas é mesmo assim, chama-se merda. Quem já passou por esta experiência sabe bem a duração deste odor na sola do bota e do que custa a desaparecer. Esfrega-la na erva ajuda, mas não é suficiente. E se em vez de uma bota for um sapato de domingo, está a semana estragada. Nas Taliscas, num quelho perto do forno e debaixo das pontes eram onde se encontravam as melhores espécies.
    Só quem passou por elas...

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  7. Mais uma vez parabéns Apaulos pois que desta forma ficam escritos muitos dos costumes dos nossos antepassados para que os vindouros, se quiserem, reviverem e transmitirem aos seus filhos os usosos e costumes dos seus avós.

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  8. Parabéns ao nosso "grande cronista" António Paulos.Meu pai Jeremias Carapito,vai gostar ainda mais.

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  9. Além do "Pára Raios" da Santa Bárbara que as nossas mães invocavam, havia uma outra oração sob a qual nos procuravam proteger naquelas horas de aflição, passando mesmo por cima da Santa; então cantavam: Bendito e louvado seja o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, fruto do ventre sagrado da Virgem puríssima, Santa Maria. Muitas vezes, aquando das trevoadas de um belo medonho que pressenciei em Africa, que rasgavam o céu em várias direcções, a sua melodia ainda ressoava nos meus ouvidos.
    Sempre as Mães.

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    1. essa outra oração era mais complicada, mas também me lembro dela. Mas desde que a outra resolvesse...

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  10. Quem hoje visite a aldeia e leia esta crónica, penso que dirá, esta crónica é verdadeira ficção!....

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    1. há odores que se perderam para todo o sempre. É pena.

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  11. Será que é pena que se tenham perdido!.. Mas estas crónica também têm o mérito de nos dizerem como era, ainda que os odores não se sintam; de resto, adaptemo-nos à civilização/modernização, não esquecendo como foi e os sítios onde andámos e que pisámos.

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  12. De facto é bem verdade, só nos lembramos de Santa Bárbara quando ouvimos a trevoada, se não vejamos: como o seu recinto não está cuidado!.. Mas isto não é só de agora!... É verdade, mas o provérbio popular tb. não foi escrito agora. Não acham que deveria merecer outra atenção!..

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  13. As nossas Mães eram mulheres de FÉ; agora fazem-se procissões a pedir chuva e ninguém leva o guarda chuva!...
    Saudações Samarras.

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