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Portugal deixou de ser um país rural. Se esta ideia já era uma percepção muito enraizada, concretizou-se estatisticamente apenas na década de 90. Em 1991, o recenseamento geral da população ainda revelava que uma ligeira maioria dos portugueses – cerca de 52 por cento – vivia em aglomerados com menos de dois mil habitantes. Dez anos depois, reduziu-se, pela primeira vez na história do país, para uma posição minoritária de 45 por cento. Na última década, Portugal assistiu impávido a um dos maiores êxodos rurais de que há memória. Cerca de um milhão de portugueses, em apenas uma década, optaram por abandonar aldeias para rumar até às vilas e cidades. Os aglomerados populacionais com mais de dois mil habitantes registaram um ritmo de crescimento quatro vezes superior ao crescimento global da população.

Em termos populacionais, a macrocefalia bicéfala – ou se calhar, acéfala – formada pelas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, acentuou-se, concentrando-se aí cerca de 60 por cento da actual população portuguesa. E a litoralização populacional é outra das imagens de marca do país. Cerca de 80 por cento da população portuguesa e três quartos das localidades estão encaixadas na estreita faixa costeira que se estende do Minho-Lima até à Península de Setúbal. Se acrescentarmos o Algarve chega-se quase aos 85 por cento. Os 23 concelhos com mais de 100 mil habitantes – todos na faixa litoral, dos quais apenas três (Coimbra, Feira e Leiria) não pertencem aos distritos de Lisboa, Porto, Braga e Setúbal – possuem 40 por cento das “almas lusitanas” apinhadas em menos de quatro por cento da área do país.

Neste cenário, se Portugal fosse uma jangada já se tinha virado, transformando-se numa Atlântida. Não a sendo, também não está muito longe de um “naufrágio”. Como se um “buraco negro” insaciável se tivesse criado no litoral do nosso país, a população portuguesa está a transformar o interior num autêntico deserto. Como se a democracia necessitasse de “matar” o mito da ruralidade defendida pelo Estado Novo e que vem desde a monarquia. Actualmente, os distritos de Beja, Bragança, Castelo Branco, Guarda, Vila Real e Beja têm menos população do que há um século atrás, quando Portugal tinha então cerca de metade dos habitantes. A actual sangria demográfica do interior do país não é um problema inédito nem recente da história contemporânea de Portugal. Os distritos de Beja, Castelo Branco, Guarda e Portalegre vêem desaparecer habitantes paulatinamente, década após década, desde os anos 50. E os distritos de Bragança, Évora, Vila Real e Viseu perdem população desde a década de 60, embora os três últimos tenham registado uma pequena correcção na ressaca da democracia e devido ao regresso das ex-colónias. Contudo, os fenómenos que justificam esta fase mais recente do processo de desertificação do mundo rural são distintos dos que concorreram para os processos análogos dos anos 50 e 60 e dos da segunda década do século XX. Sobretudo ao nível das causas: já não são conjunturais, passaram a ser estruturais.

Na segunda década do século passado, as epidemias de gripe pneumónica – que matou cerca de 103 mil pessoas em 1918 e 1919, ou seja, quase cinco por cento da população dessa época –, a Primeira Guerra Mundial e alguns fenómenos de emigração foram factores que estiveram na base de perdas populacionais significativas no mundo rural. Durante aquela década, por exemplo, o distrito de Bragança perdeu 11 por cento dos seus habitantes. Nessa altura, Lisboa, Porto e a emigração para a América do Sul começavam a ser um dos principais destinos dessa população.

Na década de 60, foi a pobreza do meio rural e também uma ainda mais forte emigração para o estrangeiro – em parte também devido à repressão política – que estiveram na base do êxodo rural. Nessa década Portugal perdeu dois por cento dos seus habitantes, embora os distritos de Lisboa e Porto até tenham aumentado a sua população em mais de 10 por cento. O interior só tinha um sentido: o estrangeiro ou a grande cidade. Por isso, todos os seus distritos, sem excepção, registaram nos anos 60 perdas populacionais entre 15 por cento e 26 por cento.


Entretanto, a democracia chega e a esperança no país renasce. Mas enganou-se quem esperava que o regresso dos então chamados retornados, dos exilados políticos e a estabilização da democracia – que, aliás, culminou num pequeno “baby-boom” – trouxessem um novo alento ao país, em geral, e ao interior, em particular. Contudo, não só o Alentejo continuou a perder população, como nos anos 80 se lhe juntou todo o resto do interior. E quando todos estavam preocupados com a desertificação alentejana, silenciosamente o fenómeno estava a ser ainda mais dilacerante na região de Trás-os-Montes e Beira Interior. Desde 1981, os distritos de Bragança, Vila Real e Guarda tiveram um decréscimo populacional de 19 por cento, 15 por cento e 13 por cento, respectivamente. Isto é, superior aos dos distritos alentejanos: Beja, com uma redução de 14 por cento, Portalegre de 11 por cento e Évora de quatro por cento.

Actualmente, nos 118 concelhos dos distritos mais deprimidos do continente português – Beja, Bragança, Castelo Branco, Évora, Guarda, Portalegre, Vila Real e Viseu – apenas vive cerca de 15 por cento da população nacional, apesar de ocuparem quase 60 por cento do território. Estes distritos perderam, no conjunto, aproximadamente 250 mil habitantes em duas décadas. Isto quando, durante o mesmo período, a população nacional cresceu quase seis por cento. Por isso, se a causa das sangrias populacionais da década de 10 e de 60 do século passado foram a doença, a pobreza e a repressão política, a das últimas décadas só pode ter sido uma: irresponsabilidade política.

in livro Estrago da Nação
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